Morte
lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. Maldito d.
Manuel I e sua corja de tenentes Eusébios. Quadrados de pedregulho
irregular socados à mão. À mão! É claro que ia soltar, ninguém
reparou que ia soltar? Branco, preto, branco, preto, as ondas do mar
de Copacabana. De que me servem as ondas do mar de Copacabana? Me
deem chão liso, sem protuberâncias calcárias. Mosaico estúpido.
Mania de mosaico. Joga concreto em cima e aplaina. Buraco, cratera,
pedra solta, bueiro-bomba. Depois dos setenta a vida se transforma
numa interminável corrida de obstáculos. A queda é a maior ameaça
para o idoso. “Idoso”, palavra odienta. Pior, só “terceira
idade”.
A
queda separa a velhice da senilidade extrema. O tombo destrói a
cadeia que liga a cabeça aos pés. Adeus, corpo. Em casa, vou de
corrimão em corrimão, tateio móveis e paredes, e tomo banho
sentado. Da poltrona para a janela, da janela para a cama, da cama
para a poltrona, da poltrona para a janela.
Olha
aí, outra vez, a pedrinha traiçoeira atrás de me pegar. Um dia eu
caio, hoje não.
Um
dia. Um dia já foi tão longe. Cruzei com o Ribeiro na Francisco Sá,
não nos víamos há tempos, ele disse para a gente se encontrar “um
dia desses”. Morreu no seguinte. Que horror estava o Caju, aquele
forno de Auschwitz. As tumbas pareciam derreter. Passei mal no
crematório, acharam que era emoção. Não deixava de ser. Estava
ótimo, o Ribeiro. Jogou vôlei até o último entardecer, saiu da
praia e apagou no banho, infarto fulminante. Não tenho mais amigos
vivos, o Ribeiro era o último. Eu tinha certeza de que ele ia me
enterrar, corria, nadava, parou de fumar aos quarenta e se recusou a
ficar brocha. A irmã acha que foi o Viagra. Comeu muita gente o
Ribeiro, ele dava muita importância para isso.
Antes
dele foi o Sílvio. Ou o Ciro? Não, o Ciro foi o primeiro, de
câncer, antes do Neto e da mulher do Neto. O Neto não aguentava a
Célia, mas morreu um ano depois dela. Vai entender. Era insuportável
a Célia, depois de velha, então, virou uma mulher amarga, ranzinza,
feia. O Neto não suportou a paz.
Pensar
que a Célia foi uma noiva gostosíssima. Devia ter morrido ali, no
auge. Se o Neto soubesse, não tinha chorado o que chorou no altar.
Homem é um bicho muito bobo.
O
Sílvio partiu num fevereiro de Carnaval. Ele abriu os trabalhos na
sexta e emendou dez dias virado. No domingo da outra semana, deixou
três vadias de prontidão no apartamento e saiu para comprar mais
pó, misturou com tudo e o coração não segurou. Encontraram o
Sílvio emborcado na Lapa, perto da Mem de Sá, com um lança-perfume
na mão e cinco gramas de cocaína no bolso. O Sílvio bebia, normal,
mas quando veio a menopausa, eu sei que é andropausa, mas não gosto
de andropausa; é que nem siririca, que é um nome repugnante, melhor
punheta, independente do gênero; enfim, veio a menopausa e o Sílvio
despirocou. Ele conheceu umas gurias novinhas do Sul, libidinosas,
traficas, e virou escravo das duas. A gente parou de se ver com as
gaúchas, elas tiraram ele de circuito. Deus mandou duas diabas
frígidas para acabar com a raça dele. Foi castigo. Que ano foi
isso? Não sei, já foram tantos: os anos e os amigos.
Fernanda
Torres, in Fim
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