quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

O inferno dos fumantes

Para um solitário ou desesperado, um cigarro na boca é uma válvula de escape. Para qualquer fumante, uma tragada o conduz a um paraíso efêmero: um momento de prazer em que as ideias e a conversa fluem.
Um suicida fuma o último cigarro antes do ato fatal? Prisioneiros e namorados costumam fumar. Quantos amantes não dão uma pitada depois de uma noite de amor?
Em certos países, um fumante é considerado um ser inferior. Lembro que na década de 1990, quando passei uma temporada na Califórnia e enrolava cigarros com tabaco holandês, tinha que sair do campus para dar umas pitadas. Eu e a chefe do departamento fumávamos quase escondidos, como se fôssemos meliantes, conspiradores ou membros de uma seita secreta. Minha amiga me disse que isso era injusto, pois milhares de americanos cheiravam cocaína, estimulando o tráfico de drogas. Algo semelhante foi dito recentemente no México por Hillary Clinton, que apenas repetiu o que García Márquez havia declarado numa entrevista: “A Colômbia fabrica cocaína, mas muitos executivos de Wall Street devem fechar as narinas”.
A campanha e as leis contra o fumo são tão drásticas que até os personagens de ficção fumam menos. Alguns param de fumar no segundo capítulo. A maioria nem fuma mais. Se o fumo fosse proibido na ficção, os personagens atormentados de Juan Carlos Onetti não existiriam. Nos romances e contos do grande escritor uruguaio — traduzidos com esmero por Josely Vianna Baptista — o tabaco e a bebida formam um par perfeito com a sordidez, a solidão e a desilusão. No inferno tão temido — mas quase sempre inevitável — da obra de Onetti, o fumo é um ritual recorrente e até mesmo necessário para a meditação dos personagens ou para a conversa entre eles.
Acendeu e tragou com força, aquecendo-se na fumada áspera” é uma das tantas frases em que o ato de fumar não é apenas um gesto diletante ou um mero passatempo, mas também o preâmbulo de um momento tenso, antes ou depois de uma decisão em que a face da desgraça se revela ao leitor.
A única vez que vi Onetti foi numa conferência em Madri, uma conferência insólita, pois ele não falou nada, ou não conseguiu dizer nada, exceto quatro palavras: “Boa noite, muito obrigado”. Fumou e bebeu o tempo todo e deixou que os outros falassem por ele. Para a plateia ficou claro que Onetti não queria aborrecer ninguém. E que também um fumante silencioso é preferível a um fumante falastrão.
No romance A consciência de Zeno, de Italo Svevo, o fumo, além de ser um vício, lida com uma dúvida moral. Apesar de ser um fumante compulsivo, a doença do burguês mulherengo Zeno Cosini é, antes de tudo, moral. A certa altura, o narrador, ao refletir sobre a relação entre o vício e a culpa durante a juventude, escreve:
Agora que estou a analisar-me, assalta-me uma dúvida: não me teria apegado tanto ao cigarro para poder atribuir-lhe a culpa de minha incapacidade? Será que, deixando de fumar, eu conseguiria de fato chegar ao homem forte e ideal que eu me supunha? Talvez tenha sido essa mesma dúvida que me escravizou ao vício, já que é bastante cômodo podermos acreditar em nossa grandeza latente. Avento esta hipótese para explicar minha fraqueza juvenil, embora sem convicção definida. Agora que sou velho e que ninguém exige nada de mim, passo com frequência dos cigarros aos bons propósitos e destes novamente aos cigarros. Que significam hoje tais propósitos? Como aquele velho hipocondríaco, descrito por Goldoni, será que desejo morrer são depois de ter passado toda a vida doente?
Claro que a leitura do romance de Svevo não ajuda um fumante a largar o vício. Mas como ex-fumante posso garantir que essa frase do escritor italiano é totalmente verossímil: “Creio que o cigarro, quando se trata do último, revela muito mais sabor”.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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