— Como
o mar se dá bem neste lugar!
Falei
assim, naquela tarde. Falava com ninguém? Não, conversava com as
ondas lá em baixo. Sou português, Domingos Mourão, nome de
nascença. Aqui me chamam Xidimingo. Ganhei afeto desse rebatismo: um
nome assim evita canseira de me lembrar de mim. O senhor inspetor me
pede agora lembranças de curto alcance. Se quer saber, lhe conto.
Tudo sempre se passou aqui, nesta varanda, por baixo desta árvore, a
árvore do frangipani.
Minha
vida se embebebeu do perfume de suas flores brancas, de coração
amarelo. Agora não cheira a nada, agora não é tempo das flores. O
senhor é negro, inspetor. Não pode entender como sempre amei essas
árvores. É que aqui, na vossa terra, não há outras árvores que
fiquem sem folhas. Só esta fica despida, faz conta está para chegar
um Inverno. Quando vim para África, deixei de sentir o Outono. Era
como se o tempo não andasse, como se fosse sempre a mesma estação.
Só o frangipani me devolvia esse sentimento do passar do tempo. Não
que eu hoje precise de sentir nenhuma passagem dos dias. Mas o
perfume desta varanda me cura nostalgias dos tempos que vivi em
Moçambique. E que tempos foram esses!
Quando
veio a Independência, faz agora vinte anos, a minha mulher se
retirou. Voltou para Portugal. E levou-me o miúdo que já estava em
idade de tropear. Na despedida, minha esposa ainda me ralhou assim:
— Você
fica e eu nunca mais lhe quero ver.
Me
sentia como se tivesse entrado num pântano. Minha vontade estava
pegajosa, minhas querências estavam atoladas no matope. Sim, eu
podia partir de Moçambique. Mas nunca poderia partir para uma nova
vida. Sou o quê, uma réstia de nenhuma coisa?
Lhe
conto uma história. Me contaram, é coisa antiga, dos tempos de
Vasco da Gama. Dizem que havia, nesse tempo, um velho preto que
andava pelas praias a apanhar destroços de navios. Recolhia restos
de naufrágios e os enterrava. Acontece que uma dessas tábuas que
ele espetou no chão ganhou raízes e reviveu em árvore.
Pois,
senhor inspetor, eu sou essa árvore. Venho de uma tábua de outro
mundo mas o meu chão é este, minhas raízes renasceram aqui. São
estes pretos que todos os dias me semeiam. Converso-lhe,
lengalengo-lhe? Vou chegando perto, como o besouro que dá duas
voltas antes de entrar no buraco. Desculpe-me este meu português, já
nem sei que língua falo, tenho a gramática toda suja, da cor desta
terra. Não é só o falar que é já outro. É o pensar, inspetor.
Até o velho Nhonhoso se entristece do modo como eu me
desaportuguesei. Me lembro de, um dia, ele me ter dito:
— Você,
Xidimingo, pertence a Moçambique, este país lhe pertence. Isso nem
é duvidável. Mas não lhe traz um arrepio ser enterrado aqui?
— Aqui,
onde?, perguntei.
— Num
cemitério daqui, de Moçambique?
Eu
encolhi os ombros. Nem cemitério eu não teria, ali no asilo. Mas
Nhonhoso insistiu:
— É
que os seus espíritos não pertencem a este lugar. Enterrado aqui,
você será um morto sem sossego.
Enterrado
ou vivo, a verdade é que não tenho sossego. O senhor vai ouvir
muita coisa aqui sobre este velho português. Hão-de-lhe dizer que
fiz e aconteci. Que até incendiei os campos, que se estendem desde
lá atrás. Até que é verdade: sim, eu lancei fogo naqueles matos.
Mas foi por motivo meu, a mando só meu. Sempre que olhava as
traseiras da fortaleza eu via a savana a perder as vistas. Perante
toda aquela devastidão me chegavam instintos de fogo e cinza.
Hoje
eu sei: África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa:
enchendo-nos de alma. Por isso, ainda hoje me apetece lançar fogo
nesses campos. Para que eles percam a eternidade. Para que saiam de
mim. É que estou tão desterrado, tão exilado que já nem me sinto
longe de nada, nem afastado de ninguém. Me entreguei a este país
como quem se converte a uma religião. Agora já não me apetece mais
nada senão ser uma pedra deste chão. Mas não uma qualquer, dessas
que nunca ninguém há-de pisar. Eu quero ser uma pedra à beira dos
caminhos.
Volto
à minha história, não se preocupe. Estava onde? Na despedida de
minha antiga esposa. Sim. Depois dela partir, vieram os distúrbios,
a confusão. Digo-lhe com tristeza: o Moçambique que amei está
morrendo. Nunca mais voltará. Resta-me só este espaçozito em que
me sombreio de mar. Minha nação é uma varanda.
Nesta
pequena pátria me venho espraiando todos estes anos, feito um
estuário: vou fluindo, ensonado, meandrando sem atrito. Na sombra,
me reiquintei, encostado àquele murmurinho como se fosse meu embalo
de nascença. Apenas as cansadas pernas, certas vezes, me
inconvinham. Mas os olhos andorinhavam o horizonte, compensando as
dores da idade.
Você
sabe, caro inspetor, em Portugal há muito mar mas não há tanto
oceano. E eu amo tanto o mar que até me dá gosto ficar enjoado. Que
faço? Emborco dessas bebidas deles, tradicionais, e me deixo
zululuar. Assim, na tontura, eu ganho a ilusão de estar em pleno
mar, vagueando sobre um barco. A mesma razão me prende ali, na
varanda do frangipani: me abasteço de infinito, me vou embriaguando.
Sim, eu sei o perigo disso: quem confunde céu e água acaba por não
distinguir vida e morte.
Falo
muito do mar? Me deixe explicar, senhor inspector: eu sou como o
salmão. Vivo no mar mas estou sempre de regresso ao lugar da minha
origem, vencendo a corrente, saltando cascata. Retorno ao rio onde
nasci para deixar o meu sêmen e depois morrer. Todavia, eu sou peixe
que perdeu a memória. À medida que subo o rio vou inventando uma
outra nascente para mim. É então que morro com saudade do mar. Como
se o mar fosse o ventre, o único ventre que me ainda faz nascer.
Demasio-me
nesta palavreação. Lhe peço desculpa, já perdi hábitos de
conviver com pessoas que têm urgências e serviços. É que aqui não
existe ninguém que tenha função que seja. Fazer o quê? Digo com
meu amigo Nhonhoso: ainda é cedo para fazermos alguma coisa; estamos
à espera que seja demasiado tarde. Em todo este asilo sempre fui o
único branco. Os restantes são velhos moçambicanos. Todos negros.
Eu e eles só temos serviço de esperar. O quê? O senhor devia era
se juntar a nós nestes vagares. Não se preocupe, deixe o relógio
sossegado. A partir de agora vou mais a direito: recomeço onde
fiquei, nesta mesma varanda onde estamos agora.
Pois,
aconteceu numa certa tarde, em que aquele tanto azul me parecia
derradeiro: a última gaivota, a última nuvem, o último suspiro.
— Agora,
sim: agora só me resta morrer.
Pensava
assim porque, neste lugar, a gente definha, morrendo tão lentamente
que nem damos conta. A velhice o que é senão a morte estagiando em
nosso corpo? Sob o perfume doce da frangipaneira, invejava o mar que,
sendo infinito, espera ainda em outra água se completar. Eu desfiava
aquela conversa sozinho. Quando se é velho toda a hora é de
conversa. Em voz alta, pedia licença a Deus para, naquele dia, me
retirar da vida:
— Deus:
eu quero morrer hoje!
Ainda
me arrepiam aquelas exatas palavras. É que me sentia em sossegada
felicidade, nenhuma dor me atrapalhava. Me faltava, no entanto,
competência para morrer. Meu peito obedecia à vaivência das ondas,
como se tivesse lembranças de um tempo que só existe fora do tempo,
lá onde o vento desenrosca a sua imensa cauda. Sorte têm estes meus
amigos que acreditam que todo o dia é o terceiro, apto a
ressuscitações.
Mas
eu requeria morrer naquela tarde que não passava nuvem e o céu
estava indeferido para gaivotas. Não era só o mar que me trazia
esse desejo de me infindar. Eram as flores do frangipani. Como se me
tivesse parenteado com a terra. Como se quem florescesse fosse eu
mesmo.
— É
verdade, a morte não haveria de me doer hoje.
— Vê
lá que eu ainda te faço a vontade.
Eram
palavras que não saíam de mim. Nem notei a chegada de Vasto
Excelêncio, esse filho da maior puta. Excelêncio era um mulato,
alto e constituído, sempre bem envergado. O tipo riu-se, ombros
hasteados:
— Queres
mesmo morrer, velho? Ou não será que já morreste e, simplesmente,
não foste informado?
Aquilo
me arranhou, fossem palavras proferidas por garganta de bicho. O
mulato prosseguiu, sempre me abestinhando:
— Não
tenha medo, velho rezingão. Amanhã já vou daqui embora.
Fiquei
surpreso, inesparado: o sacana nos deixava, assim? E de que maneira
ele se retirava?
— Não
acredita?
Sacudi
a cabeça, em negação. Vasto rondou o tronco do frangipani como o
toureiro estuda o pescoço do touro. Se apurava em me magoar:
— E
sabe que mais, velho? Vou levar comigo a minha mulher. Heim, vou
carregar Ernestina. Está ouvir, velho? Não diz nada?
— Que
nada?
— Sem
Ernestina quem é que você vai espreitar? Heim? Como será, velho?
Eu
me prescindi. Vasto me convidava para raivas e disputas. Eu só podia
me escusar. Até que ele se levantou e me puxou com força pelos
pulsos.
— Quer
saber por que sempre lhe tratei mal, Mourão? A você que é um anjo
caído dos lusitanos céus?
Fingi
pegar o céu com os olhos, apenas para evitar as fuças dele.
Recordei os tantos castigos recebidos nesses anos. O diretor assentou
os dois pés em cima do meu tornozelo.
— Dói?
Como pode ser? Os anjos não têm pés!
Assim,
pisando-me onde o corpo mais me doía, o mulato me calcava acima de
tudo a alma.
— Está
fingir de pedra? Pois, então: a pedra não é coisa de se pisar?
Aguentei,
impestanejável. Os bafos do satanhoco me salpingavam. Um desfile de
insultos se estribilhou da boca dele. Me segurou as orelhas e me
cuspiu na cara. Foi saindo de cima de mim e se afastou. Então, dei
azo a antigas fúrias: peguei numa pedra e apontei à cabeça do
sacana. Uma inesperada mão me travou o gesto.
— Não
faça isso, Xidimingo.
Era
Ernestina, a mulher de Excelêncio. Me puxou para o assento de pedra.
Suas mãos me desenharam as costas.
— Sente
aqui. Obedeci.
Ernestina
me passou os dedos pelos cabelos. Aspirei o ar em volta: nenhum
cheiro me chegou. Era eu que inventava os perfumes dela?
— Você
não entende as maldades dele, não é?
— Não.
— É
que você é branco. Ele precisa de o maltratar.
— E
porquê?
— Tem
medo que o acusem de racismo.
Eu,
sinceramente, não entendi. Todavia, estando assim junto dela, eu não
requeria nenhum entendimento. Única coisa que fiz foi levantar-me e
colher umas tantas flores. Frágeis, as pétalas soltaram-se logo no
gesto da oferta. Ernestina levou as mãos ao rosto.
— Meu
Deus, como eu gosto deste perfume.
Alisei
compostura em meu fato de domingo. Eu já não fazia ideia nenhuma
sobre os dias e as semanas. Para mim todos os dias tinham sabor de
domingo. Talvez eu quisesse apressar o tempo que me restava.
Ernestina me perguntou:
— O
senhor não sente saudade?
— Eu?
— Quando
está assim, olhando o mar, não sente saudade?
Abanei
a cabeça. Saudade? De quem? Ao contrário, me sabe bem, esta
solidão. Juro, inspetor. Me sabe bem estar longe de todos os meus.
Não sentir suas queixas, suas doenças. Não ver como envelhecem. E,
mais que tudo, não ver morrer nenhum dos meus. Eu aqui estou longe
da morte. É esse um pequenito gosto que me resta. A vantagem de
estar longe, nesta distância toda, é não ter nenhuma família.
Parentes e antigos amigos estão lá, depois desse mar todo. Os que
morrem desaparecem tão longe, é como se fossem estrelas que tombam.
Caem sem nenhum ruído, sem se saber onde nem quando.
Me
leve a sério, inspetor: o senhor nunca há-de descobrir a verdade
desse morto. Primeiro, esses meus amigos, pretos, nunca lhe vão
contar realidades. Para eles o senhor é um mezungo, um branco como
eu. E eles aprenderam, desde há séculos, a não se abrirem perante
mezungos. Eles foram ensinados assim: se abrirem seu peito perante um
branco eles acabam sem alma, roubados no mais íntimo. Eu sei o que
vai dizer. Você é preto, como eles. Mas lhes pergunte a eles o que
veem em si. Para eles você é um branco, um de fora, um que não
merece as confianças. Ser branco não é assunto que venha da raça.
O senhor sabe, não é verdade? Depois, há ainda mais. É o próprio
regime da vida. Eu já não acredito na vida, inspetor. As coisas só
fingem acontecer. Excelêncio morreu? Ou simplesmente mutou-se,
deixou de se ver?
Termino,
inspetor. Assassinei o diretor do asilo. Foi por ciúmes? Não sei.
Acho que nunca sabemos o motivo quando matamos por paixão. Agora, já
no esfriado do tempo encontro explicação: nessa tarde, ao me
despedir de Ernestina, reparei que ela evitava ser olhada de ambos os
lados. Percebi, por fim. O seu rosto estava marcado, tingido de ter
sido sovado.
— Vasto
lhe bateu outra vez?
Ela
desviou o rosto. Sua mão me alicateou o braço, recomendando-me
sossego. Deixe, não é nada , disse. E saiu, cabeça na sombra dos
ombros. Aquela mulher que eu tanto queria não era uma simples
pessoa. Ela era todas as mulheres, todos os homens que foram
derrotados pela vida. Tudo então me apareceu simples: Vasto deveria
desaparecer, eu o devia matar o mais breve possível. Simplesmente,
esperei pela noite. Nessa hora, ele sempre passava por um corredor
estreito, sem tecto, que liga o quarto dele à cozinha. Lhe montei a
armadilha lá em cima. Fiz subir uma grande pedra e a deixei, no
alto, preparada para cair sobre Vasto Excelêncio.
E
agora me deixe só, inspetor. Me custa chamar lembranças. Porque a
memória me chega rasgada, em pedaços desencontrados. Eu quero a paz
de pertencer a um só lugar, eu quero a tranquilidade de não dividir
memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a certeza que morro de
uma só única vez. Custa-me ir cumprindo tantas pequenas mortes,
essas que apenas nós notamos, na íntima obscuridade de nós. Me
deixe, inspetor, que eu acabei de morrer um bocadinho.
Mia
Couto, in A
varanda do Frangipani
Nenhum comentário:
Postar um comentário