segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Umas palavras para começar

Nasci no meio da fumaça e da mortandade da Segunda Guerra Mundial e a maior parte da minha juventude transcorreu na expectativa de ver o planeta voar em pedaços quando alguém premisse distraidamente um botão e fossem disparadas as bombas atômicas. Ninguém esperava ter uma vida muito longa; devorávamos angustiadamente cada momento antes que o apocalipse nos surpreendesse; não havia tempo para examinar o próprio umbigo e tomar notas, como se faz agora. Ainda por cima cresci em Santiago do Chile, onde qualquer tendência natural para a auto contemplação é cortada pela raiz. A máxima que define o estilo de vida dessa cidade é: “Camarão que dorme, vai na corrente”. Noutras culturas mais sofisticadas, como as de Buenos Aires ou de Nova Iorque, a visita ao psicólogo era uma atividade normal; abster-se era considerado uma evidente falta de cultura ou rusticidade mental. Mas no Chile só os loucos perigosos o faziam, e metidos numa camisa-de-força; mas, nos anos setenta, com a chegada da revolução sexual isso mudou. Talvez exista uma ligação... Na minha família nunca ninguém recorreu à terapia, apesar de alguns de nós sermos casos de estudo clássicos, porque a ideia de confiar assuntos íntimos a um desconhecido, a quem ainda por cima se pagava para ouvir, era absurda. Para isso serviam os padres e as tias. Estou pouco preparada para a reflexão, mas nas últimas semanas dei comigo a refletir sobre o meu passado com tal frequência que só pode explicar-se como um sinal de senilidade prematura.
Dois acontecimentos recentes desencadearam esta epidemia de recordações. O primeiro foi uma observação ocasional do meu neto Alejandro, o qual me surpreendeu a esquadrinhar diante do espelho o mapa das minhas rugas e disse, compassivo: “Não te preocupes, velha, vais viver pelo menos mais três anos”. Decidi nesse momento que tinha chegado a hora de olhar a minha vida de modo diferente, para averiguar como desejo conduzir esses três anos que tão generosamente me foram concedidos. O outro acontecimento foi a pergunta de um desconhecido durante uma conferência de escritores de viagens, que me coube inaugurar. Devo esclarecer que não pertenço a esse estranho grupo de pessoas que viaja para lugares remotos, sobrevive às bactérias e publica livros para convencer os incautos a seguirem os seus passos. Viajar é um esforço excessivo, e mais ainda a lugares onde não haja serviço de quartos. As minhas férias ideais são as passadas debaixo de um guarda-sol no meu terraço, lendo livros sobre aventurosas viagens que nunca faria, a menos que fosse para fugir de algo. Venho do chamado Terceiro Mundo (qual é o segundo?) e tive de arranjar um marido para viver legalmente no primeiro; não tenho a mínima intenção de regressar ao subdesenvolvimento sem uma boa razão. Contudo, e muito a contragosto, deambulei por cinco continentes e ainda por cima coube-me ser auto-exilada e imigrante. Sei alguma coisa de viagens e por isso me pediram que falasse naquela conferência. Quando terminei o meu breve discurso, levantou-se um braço no meio do público e um jovem perguntou-me qual o papel da nostalgia nos meus romances. Fiquei momentaneamente sem palavras. Nostalgia... segundo o dicionário é “a dor de estar ausente da pátria, a melancolia provocada pela recordação de uma felicidade perdida”. A pergunta cortou-me a respiração, porque até esse instante não me tinha dado conta de que escrevo como um exercício constante de saudade. Fui estrangeira durante quase toda a minha vida, condição que aceito porque não tenho alternativa. Várias vezes me vi forçada a partir, rompendo laços e deixando tudo para trás, para começar de novo noutro lugar; fui peregrina por mais caminhos do que os que a memória me consente. De tanto me despedir secaram-se-me as raízes e tive de gerar outras que, à falta de um lugar geográfico onde se fixarem, o fizeram na memória; mas, cuidado!, a memória é um labirinto onde espreitam minotauros.
Se até há pouco tempo me tivessem perguntado de onde sou, teria respondido, sem pensar muito, que não sou de sítio nenhum, ou latino-americana, ou talvez chilena de coração. Hoje, porém, digo que sou americana, não só porque assim o testemunha o meu passaporte, ou porque essa palavra inclui a América de norte a sul, ou porque o meu marido, o meu filho, os meus netos, a maioria dos meus amigos, os meus livros e a minha casa estão no Norte da Califórnia, mas também porque ainda não há muito um atentado terrorista destruiu as torres gêmeas do World Trade Center e a partir desse momento algumas coisas mudaram. Não se pode permanecer neutral numa crise. Esta tragédia confrontou-me com o meu sentido de identidade; descubro que hoje sou mais uma dentro da variegada população norte-americana, tanto como antes fui chilena. Já não me sinto uma estranha nos Estados Unidos. Ao ver o colapso das torres, tive a sensação de haver vivido esse pesadelo de forma quase idêntica. Por uma arrepiante coincidência - karma histórico - os aviões sequestrados nos Estados Unidos despedaçaram-se contra os seus objetivos numa terça-feira, 11 de Setembro, exatamente o mesmo dia da semana e do mês - e quase à mesma hora da manhã - em que ocorreu o golpe militar do Chile, em 1973. Este último foi um ato terrorista orquestrado pela CIA contra uma democracia. As imagens dos edifícios a arder, do fumo, as chamas e o pânico, são semelhantes em ambos os cenários. Nessa longínqua terça-feira de 1973 a minha vida despedaçou-se, nada voltou a ser como antes, perdi o meu país. A terça-feira fatídica de 2OO1 foi também um momento decisivo, nada voltará a ser como antes e eu ganhei um país. Essas duas perguntas, a do meu neto e a do desconhecido na conferência, deram origem a este livro, que ainda não sei para onde irá; por enquanto divago, como sempre divagam as recordações, mas peço ao leitor que me acompanhe mais um pouco.
Isabel Allende, in O meu país inventado

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