segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Chavões

Atacam por aí o lugar-comum. Não sei por quê. Sendo comum, deve ser conveniente ao público, e não valem contra ele as opiniões de alguns cavalheiros que não são comuns.
Se me dão licença, declaro que tenho predileção especial pelos clichês. E a minha razão está aqui: é mais cômodo viajar em automóvel por uma estrada de rodagem sem buracos que percorrer os caminhos sertanejos cheios de surpresas de espinho rasga-beiço.
Comparando mal (ou comparando bem, como quiserem), a literatura encrencada dos homens de talento é como as veredas de minha terra: tem curvas fechadas, rampas que escangalham um carro, tocos prejudiciais aos pneumáticos, pedras, atoleiros, riachos, precipícios, areais e ramos indiscretos que batem na cara da gente.
Tudo isso é desagradável e produz abalos e interrupções frequentes na viagem e na leitura.
Vejam agora a rodovia bem conservada e a crônica literária de um cidadão inofensivo. Ambas são planas, batidas, retas, extensas — e resvalamos por elas facilmente, com velocidade de oitenta quilômetros por hora, sem precisão de entendê-las. Quando muito, perguntamos ao chauffeur ou ao conhecido que entra no café: “Quem foi que fez isto?”
Com efeito, nenhum viajante ou leitor, por muito exigente que seja, sentiu nunca a necessidade de compreender uma estrada ou um artigo campanudo.
E precisamente pela sensação de preguiça que experimentamos lendo frases bombásticas simpatizo com certos autores. Sem eles, jornais e livros se tornariam depressa intoleráveis.
Imaginem a maçada de estar um cristão a catar pensamentos em todas as linhas que encontra. É trabalho penoso, porque há sujeitos que pensam bem, mas não se exprimem com clareza, outros que se agarram a assuntos terríveis e nos obrigam a olhar para cima e a procurar uma brecha que não aparece. Quase sempre detestamos mistérios.
Por isso lemos com imenso prazer os escritores que não dizem nada. Excelentes criaturas. Têm boas intenções e portam-se decentemente.
Ora vejam. Coberto de glória, o Sr. Graça Aranha resolve morrer, o que é uma perda irreparável para a sua excelentíssima família e para a Academia Brasileira de Letras.
Um doutor que há vinte e tantos anos leu Canaã e entusiasmou-se, como então era costume, lembra-se de compor o necrológio do ilustre diplomata. Arma-se de gramáticas, dicionários e outros instrumentos análogos, senta-se, bebe café, fuma cigarros e atira quatro colunas em cima do finado. Pois essas quatro colunas, com pequenas modificações no tipo, no título e em alguns adjetivos, servem perfeitamente para defender o divórcio, para fazer declarações de amor e para insultar a Rússia. Têm minas de ouro, cachoeiras, florestas, a pátria, a bandeira, o céu, o mar, um grande número de instituições consideráveis que a gente lê pensando na vida, pensando no câmbio, ou não pensando em coisa nenhuma. É admirável.
Comparem um capítulo do Sr. Oliveira Vianna sobre o Brasil colonial a um desses artigos que por aí se publicam a respeito de Castro Alves ou da prefeitura municipal de Porto de Pedras. A primeira tem latifúndios, engenhos de banguê, nobreza rural, pecuária, mineração e governadores gerais; o segundo tem tudo. Ou não tem nada. É ótimo. Não nos perturba as ocupações ordinárias, pode ler-se no banho, em cima duma bicicleta, ou junto a um tabuleiro de xadrez. E adapta-se admiravelmente às nossas condições interiores. Se estamos zangados, afirmamos que aquilo é insensatez; se estamos de bom humor, achamos engraçado e útil como objeto de estudo. Os católicos levantam os olhos para o céu e sorriem docemente: “Pobrezinho, é um bem-aventurado”; os ateus rasgam o jornal e gritam: “Ora, sebo!”
Apresento uma sugestão aos homens inteligentes: deixem de escrever e entreguem a pena aos imbecis.
Graciliano Ramos, in Garranchos (Novidade, Maceió, nº 8, 30/05/1931, p. 7.)

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