Numa
das vezes em que se encontraram ela afinal perguntou-lhe o nome.
– Olímpico
de Jesus Moreira Chaves — mentiu ele porque tinha como sobrenome
apenas o de Jesus, sobrenome dos que têm pai. Fora criado por um
padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar pessoas para se
aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher.
– Eu
não entendo o seu nome — disse ela. — Olímpico?
Macabéa
fingia enorme curiosidade escondendo dele que ela nunca entendia tudo
muito bem e que isso era assim mesmo. Mas ele, galinho de briga que
era, arrepiou-se todo com a pergunta tola e que ele não sabia
responder. Disse aborrecido:
– Eu
sei mas não quero dizer!
– Não
faz mal, não faz mal, não faz mal... a gente não precisa entender
o nome.
Ela
sabia o que era o desejo — embora não soubesse que sabia. Era
assim: ficava faminta mas não de comida, era um gosto meio doloroso
que subia do baixo-ventre e arrepiava o bico dos seios e os braços
vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía. Ficava
então meio nervosa e Glória lhe dava água com açúcar.
Olímpico
de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou
que ele não se chamava de “operário” e sim de “metalúrgico”.
Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também
tinha orgulho de ser datilógrafa, embora ganhasse menos que o
salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo.
“Metalúrgico e datilógrafa” formavam um casal de classe. A
tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um
cigarro acendendo-o do lado errado, na ponta da cortiça. O trabalho
consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima da
máquina para colocá-las embaixo, sobre uma placa deslizante. Nunca
se perguntara por que colocava a barra embaixo. A vida não lhe era
má e ele até economizava um pouco de dinheiro: dormia de graça
numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia.
Macabéa disse:
– As
boas maneiras são a melhor herança.
– Pois
para mim a melhor herança é mesmo muito dinheiro. Mas um dia vou
ser muito rico disse ele que tinha uma grandeza demoníaca: a sua
força sangrava.
Uma
coisa que tinha vontade de ser era toureiro. Uma vez fora ao cinema e
estremecera da cabeça aos pés quando vira a capa vermelha. Não
tinha pena do touro. Gostava era de ver sangue. No Nordeste tinha
juntado salários e salários para arrancar um canino perfeito e
trocá-lo por um dente de ouro faiscante. Este dente lhe dava posição
na vida. Aliás, matar tinha feito dele homem com letra maiúscula.
Olímpico não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de
“cabra safado”. Mas não sabia que era um artista: nas horas de
folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as
vendia. Todos os detalhes ele punha e, sem faltar ao respeito,
esculpia tudo do Menino Jesus. Ele achava que o que é, é mesmo, e
Cristo tinha sido além de santo um homem como ele, embora sem dente
de ouro.
Os
negócios públicos interessavam Olímpico. Ele adorava ouvir
discursos. Que tinha seus pensamentos, isso lá tinha. Acocorava-se
com o cigarro barato nas mãos e pensava. Como na Paraíba ele se
acocorava no chão, o traseiro sentado no zero, a meditar. Ele dizia
alto e sozinho:
– Sou
muito inteligente, ainda vou ser deputado.
E
não é que ele dava para fazer discurso? Tinha o tom cantado e o
palavreado seboso, próprio para quem abre a boca e fala pedindo e
ordenando os direitos do homem. No futuro, que eu não digo nesta
história, não é que ele terminou mesmo deputado? E obrigando os
outros a chamarem-no de doutor.
Macabéa
era na verdade uma figura medieval enquanto Olímpico de Jesus se
julgava peça-chave, dessas que abrem qualquer porta. Macabéa
simplesmente não era técnica, ela era só ela. Não, não quero ter
sentimentalismo e portanto vou cortar o coitado implícito dessa
moça. Mas tenho que anotar que Macabéa nunca recebera uma carta em
sua vida e o telefone do escritório só chamava o chefe e Glória.
Ela uma vez pediu a Olímpico que lhe telefonasse. Ele disse:
– Telefonar
para ouvir as tuas bobagens?
Quando
Olímpico lhe dissera que terminaria deputado pelo Estado da Paraíba,
ela ficou boquiaberta e pensou: quando nos casarmos então serei uma
deputada? Não queria, pois deputada parecia nome feio. (Como eu
disse, essa não é uma história de pensamentos. Depois
provavelmente voltarei para as inominadas sensações, até sensações
de Deus. Mas a história de Macabéa tem que sair senão eu estouro.)
As
poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha,
carne-de-sol, carne-seca, rapadura, melado. Pois esse era o passado
de ambos e eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já que
passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia. Pareciam por demais
irmãos, coisa que — só agora estou percebendo — não dá para
casar. Mas eu não sei se eles sabiam disso. Casariam ou não?
Ainda
não sei, só sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra
faziam no chão.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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