— O
meu amigo Faustino Xavier de Novais conheceu perfeitamente aquele
nosso amigo Silvestre da Silva...
— Ora,
se conheci!... Como está ele?
— Está
bem: está enterrado há seis meses.
— Morreu?!
— Não
morreu, meu caro Novais. Um filósofo não deve aceitar no seu
vocabulário a palavra morte, senão convencionalmente. Não
há morte. O que há é metamorfose, transformação, mudança de
feito. Pergunta tu ao doutíssimo poeta José Feliciano de Castilho o
destino que tem a matéria. Dir-te-á a teu respeito o que disse de
Ovídio, sujeito que não era mais material que tu e que o nosso
amigo Silvestre da Silva. “Ovídio cadáver”, pergunta o sábio,
“onde é que pára?” Tudo isso corre fados misteriosos, como
Adão, como Noé, como Rômulo, como nossos pais, como nós, como
nossos filhos, rolando pelos oceanos, flutuando nos ares, manando nas
fontes, correndo nos rios, agregado nas pedras, sumido nas minas,
misturado nos solos, viçando nas ervas, rindo nas flores, recendendo
nos frutos, cantando nos bosques, rugindo nas matas, rojando dos
vulcões, etc.” Isto, a meu ver, é exato e, sobretudo, consolador.
O nosso amigo Silvestre da Silva, a esta hora, anda repartido em
partículas. Aqui faz parte da garganta dum rouxinol; além, é
pétala duma tulipa; acolá, está consubstanciado num olho de
alface; pode ser até que eu o esteja bebendo neste copo de água que
tenho à minha beira e que tu o encontres nos sertões da América,
alguma vez, transfigurado em cobra cascavel, disposto a comer-te, meu
Faustino.
O
que te eu assevero é que ele deixou de ser Silvestre da silva, há
seis meses, posto que os parentes teimam em lhe ter uma lousa sobre o
chão, onde o estiraram, com esta mentira: ‘Aqui jaz Silvestre da
Silva.’
Pois
é verdade.
O
nosso amigo começou a queixar-se, há de haver um ano, de falta de
apetite, e frialdade de estômago, efeito das indigestões. Foi de
mal a pior. Desconfiou que passava a outra metamorfose, e deu ordem
aos seus negócios da alma com a eternidade. Dos bens terrenos não
fez deixação, porque lá estavam os credores, seus presuntivos
herdeiros, ainda que alguns deles declinaram a herança a benefício
de inventário, lamentando que em Portugal não fosse lei a prisão
por dívidas: parece que os irritou a certeza de que o cadáver
insolvente não podia ser preso. Em outro ponto te darei mais detida
notícia desta catástrofe.
Eu
fui o herdeiro dos seus papéis. Alguns credores quiseram
disputarmos, cuidando que eram papéis de crédito. Fiz-lhes entender
que eram pedaços dum romance; e eles, renunciando a posse, disseram
que tais pataratices deviam chamar-se papelada, e não papéis.
Aceitei
a distinção como necessária e retirei com a papelada, resolvido a
dá-la à estampa, e com o produto dela ir resgatando a palavra do
nosso defunto amigo, embolsando os credores os credores. Fiz um
cálculo aproximado, que me anima a asseverar aos credores de
Silvestre da Silva que hão de ser plenamente pagos, feita a 10.ª
edição deste romance.
Aqui
tens tu uma ação que deve ser extremamente agradável às moléculas
circunfusas do nosso amigo. Espero que Silvestre ainda venha a
agradecer-me o culto que assim dou à memória dele, convertido em
aroma de flor, em linha de cristalina fonte, ou em Ambrósia de vinho
do Porto, metamorfose mais que muito honrosa, mas pouco admirativa
nele, que foi deste mundo já saturado em bom vinho. É opinião
minha que o nosso amigo, a esta hora, é uma folhuda parreira.
Vamos
à papelada, como dizem os outros.
Tenho
debaixo dos olhos, mal enxutos da saudade, três volumes escritos da
mão de Silvestre.
O
primeiro, na lauda, que serve de capa, tem a seguinte inscrição em
letras maiúsculas: Coração.
O
segundo, menos volumoso, diz: Cabeça.
O
título do terceiro, e maior volume, é: Estômago.
Nenhum
deles designa época; mas quem tiver, como eu, particular
conhecimento do indivíduo, pode, sem grande erro cronológico, datar
os três manuscritos.
O
Coração reina desde 1844 até 1854. São aqueles dez anos em que
nós vimos Silvestre fazer tolice brava.
Em
1855 notamos a transfiguração do nosso amigo, que durou até 1860,
época em que tu já tinhas trocado o Patrimônio da estima dos teus
conterrâneos pelas lentilhas do Novo Mundo. Não viste, pois, a
transição que o homem fez para o estômago, sepultura indigna das
santas quimeras, que aconteceram na mocidade, e consequência funesta
da má direção que ele deu aos Projetos, raciocínios e sistemas da
cabeça. Podemos assinar tempo ao terceiro volume, desde 1860 até
fim de 61, em que o autobiógrafo se desmanchou do que era para se
arranjar doutro feitio.
Silvestre,
como sabes, tinha muita lição de maus livros. Olha se te lembras
que os seus folhetins eram um viveiro de imoralidades vestidas, ou
nuas, à francesa. Jornal em que ele escrevesse morria ao fim do
primeiro trimestre, depois de ter matado muitas ilusões. Quem hoje
desembrulha um queijo flamengo, e lê no invólucro um folhetim de
silvestre, mal pensará que tem entre as mãos o passaporte de muita
gente para o inferno. Não há muito que eu, despejando uma quarta de
mostarda num banho de pés, li o papel, que a contivera, e achei o
seguinte período de um folhetim do meu saudoso amigo:
“Diz
Petrônio que fora o medo que inventara as divindades.
Deus
é o que é. O homem é o pequeníssimo bicho da terra, de que fala o
Camões.
Entre
Deus e o homem, só a soberba estúpida do homem podia inventar
convenções, concordatas, obrigações e alianças.
O
sagui é muito menos estúpido e mais modesto. Come, bebe, dá
cabriolas, faz caretas ao mau tempo, coça-se ao sol, retouça-se à
sombra, vive, e acaba feliz, porque se não receia de vir a ser
homem.
A
estolidez do homem! Diz ele empapado de vaidade tola: ‘Deus tem os
olhos em mim!’ Que importância! Deus tem os olhos nele! Se assim
fosse, havia de ver bonitas coisas o criador do homem que mata seu
irmão!
Os
olhos nele, para quê? Para envergonhar-se a cada hora da sua
obra!...
É
a blasfêmia em todo o seu asco!
Rebalsa-te
em sangue, miserável vampiro! Emperla os teus cabelos, meretriz, que
deixas morrer tua mãe de fome! Mãe infame, come aí em toalhas de
Flandres o preço da desonra de tua filha! Ostentai-vos, vermes, aos
olhos de Deus, que estão pasmos em vós!...”
Ainda
bem que o fragmento findava nisto, senão eu teria a imprudência de
to dar inteiro nesta cópia, em que senti as repugnâncias do pulso.
Vê tu que missionário era aquele Silvestre! Que ceifa de almas fez
o empreiteiro das trevas inferiores naqueles anos!
Eu
de mim pude salvar-me, estudando, como sabes, a teologia a fundo. Tu
também te salvaste, penso eu, justamente porque não sabias coisa
nenhuma de teologia e acreditavas na religião de teus pais, visto
que a base fundamental da tua crença era a caridade. Acertou de ser
isto num tempo em que tu pedias esmola para as freiras de Lorvão e
eu, também contigo, pedia esmola no Teatro de S. João, para o poeta
Bingre.
Recorda-te,
Novais; mas não chores. Faz como eu: ergue o peito de sobre a banca
do trabalho e sacode a lájea que te está pesando nas costas... Olha
a vaidade! Teremos nós sepultura com lájea!? Conta com um
comarozinho de terra, e umas papoulas na Primavera, e uma tábua
preta com um número branco. A aritmética há de perseguir-me além
da morte!
Atemos
o fio.
Os
manuscritos de Silvestre careciam de ser adulterados para merecerem a
qualificação de romance. É coisa que eu não faria, se pudesse.
Acho aqui em páginas correntemente numeradas sucessos sem ligação
nem contingência. Umas histórias em princípio, outras que começam
pelo fim e outras que não tem fim nem princípio. Pode ser que eu,
alguma vez, em notas, elucide as escuridades do texto, ou ajunte às
histórias incompletas a catástrofe, que sucedeu em tempo que o meu
amigo se retirara da sociedade, onde deixara a víscera dos afetos.
No
volume denominado Coração encontro algumas poesias, que não
traslado, por desmerecerem publicidade, sobre serem imprestáveis ao
contexto da obra. Não designam as pessoas a quem foram dedicadas,
nem me parecem coisa de grande inspiração. Silvestre, em poesia,
era vulgar; e a poesia vulgar, mormente na pátria dos Junqueiros,
dos Álvares de Azevedo, dos Casimiros de Abreu e dos Gonçalves
Dias, é um pecado publicá-la. Sonego, pois, as poesias, em abono da
reputação literária do nosso amigo.
Basta
de preâmbulo.
Camilo
Castelo Branco, in Coração, cabeça e estômago
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