segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O homem que queria eliminar a memória

Andrea Danti/Shutterstock

Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião. Disse que era caso de vida ou morte. Não se sabe como, o melhor neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos são imprevisíveis. Precisa-se muito e eles falham. Subitamente, estão ali, salvando nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar comum.
Estava na sala diante do especialista. Uma sala branca, anônima. Por que é sempre assim, deprimindo a gente logo de entrada?
O médico:
Sim?
Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu cérebro.
Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu cérebro?
Porque eu quero.
Sim, mas precisa me explicar. Justificar.
Não basta eu querer?
Claro que não.
Não sou dono do meu corpo?
Em termos.
Como em termos?
Bem, o senhor é e não é. Há coisas que o senhor está impedido de fazer. Ou melhor, eu é que estou impedido de fazer no senhor.
Quem impede?
A ética, a lei.
A sua ética manda no meu corpo? Se pago, se quero, é porque quero fazer do meu corpo aquilo que desejo. E acabou!
Olha, a gente vai ficar o dia inteiro nesta discussão! E não tenho tempo a perder. Por que o senhor quer cortar um pedaço do cérebro?
Quero eliminar a memória.
Para quê?
Incrível! As pessoas só sabem perguntar: o quê? por quê? para quê? Falei com dezenas de pessoas e todos me perguntaram: por quê? Não podem aceitar, pura e simplesmente, alguém que deseja eliminar a memória.
Já que o senhor veio a mim, tenho o direito dessa informação.
Não quero me lembrar de nada. Só isso. As coisas passaram, passaram. Fim!
Não é tão simples! Na vida diária, o senhor precisa da memória. Para lembrar pequenas coisas. Ou grandes. Compromissos, encontros, coisas a pagar etc.
É tudo isso que vou eliminar. Marco numa agenda, olho ali e pronto.
Não dá para fazer, de qualquer modo. A medicina não está tão adiantada!
Em lugar nenhum posso eliminar a minha memória?
Que eu saiba, não.
Seria muito melhor para os homens. O dia a dia. O dia de hoje para a frente. Entende o que eu quero dizer? Nenhuma lembrança ruim ou boa, nenhuma neurose. O passado fechado, encerrado. Definitivamente bloqueado. Não seria engraçado? Não se lembrar do que se tomou no café da manhã? E para que me lembrar do que tomei no café da manhã?
Se todo mundo agisse assim, acabaria a história.
E quem quer saber de história?
Imaginou o mundo?
Feliz, tranquilo. Só de futuro. O dia em vez de se transformar em passado de hoje, mudando-se em futuro. Cada instante projetado para a frente.
Não é bem assim. Teríamos apenas uma soma de instantes perdidos. Nada mais. Cada segundo eliminado. A sua existência comprovada através do quê?
Quem quer comprovar a existência?
A gente precisa.
Para quê?
O médico pensou. Não conseguiu responder. Estava totalmente confuso. Pediu ao homem que voltasse outro dia. O médico subiu para os brancos corredores do hospital, passou pela sala de operações. Chamou um amigo.
Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérebro. Eliminar a memória. O que você acha?
Muito boa ideia. Por que não pensamos nisto antes? Opero você e depois você me opera. Também quero.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

Nenhum comentário:

Postar um comentário