quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O ato de ler

E assim passei ambiciosamente da minha história de leitor à história do ato de ler. Ou, antes, a uma história da leitura, uma vez que tal história - feita de intuições privadas e circunstâncias particulares – só pode ser uma entre muitas, por mais impessoal que tente ser Em última instância, talvez, a história da leitura é a história de cada um dos leitores.
Até mesmo seu ponto de partida tem de ser fortuito. Fazendo a resenha de uma história da matemática publicada na década de 1930, Borges escreveu que ela sofria “de um defeito grave: a ordem cronológica de seus eventos não corresponde à sua ordem lógica e natural. A definição de seus elementos vem, com muita frequência, no fim, a prática precede a teoria, os trabalhos intuitivos de seus precursores são menos compreensíveis para o leitor leigo do que aqueles dos matemáticos modernos”. Em ampla medida, a mesma coisa pode ser dita de uma história da leitura. Sua cronologia não pode ser a mesma da história política. O escriba sumério para quem a leitura era uma prerrogativa muito valorizada tinha um sentimento mais intenso de responsabilidade do que o leitor de hoje em Nova York ou Santiago, pois um artigo da lei ou um acerto de contas dependia de sua exclusiva interpretação. Os métodos de leitura da Idade Média, definindo quando e como ler, distinguindo, por exemplo, entre o texto a ser lido em voz alta e aquele a ser lido em silêncio, estavam muito mais claramente estabelecidos do que aqueles ensinados na Viena fin-de-siècle ou na Inglaterra eduardiana. Uma história da leitura também não pode seguir a sucessão coerente da história da crítica literária; os receios expressos pela mística do século XIX Anna Katharina Emmerich (de que o texto impresso jamais se equipararia à sua própria experiência) foram expressos de forma muito mais forte 2 mil anos antes, por Sócrates (para quem os livros eram um empecilho à aprendizagem), e, em nossa época, pelo crítico alemão Hans Magnus Enzensberger (que elogiou o analfabetismo e propôs a volta à criatividade original da literatura oral). Essa posição foi refutada, entre outros, pelo ensaísta americano Alan Bloom. Com esplêndido anacronismo, Bloom foi emendado e melhorado por seu precursor, Charles Lamb, o qual confessou, em 1833, que amava perder-se "na mente de outros homens. Quando não estou andando, estou lendo; não posso sentar e pensar Os livros pensam para mim'? A história da leitura também não corresponde às cronologias das histórias da literatura, pois a história da leitura de um determinado autor encontra muitas vezes um começo não com o primeiro livro desse autor, mas com um dos futuros leitores dele: o marquês de Sade foi resgatado das estantes condenadas da literatura pornográfica, onde seus livros jaziam havia mais de 150 anos, pelo bibliófilo Maurice Heine e pelos surrealistas franceses.
William Blake, iguorado por mais de dois séculos, começa em nossa época com o entusiasmo de sir Geoffrey Keynes e Northrop Frye, que o tornaram leitura obrigatória em todos os currículos escolares.
Dizem que nós, leitores de hoje, estamos ameaçados de extinção, mas ainda temos de aprender o que é a leitura. Nosso futuro — o futuro da história de nossa leitura — foi explorado por santo Agostinho, que tentou distinguir entre o texto visto na mente e o texto falado em voz alta; por Dante, que questionou os limites do poder de interpretação do leitor; pela senhora Murasaki, que defendeu a especificidade de certas leituras; por Plínio, que analisou o desempenho da leitura e a relação entre o escritor que lê e o leitor que escreve; pelos escribas sumérios, que impregnaram o ato de ler com poder político; pelos primeiros fabricantes de livros, que achavam os métodos de leitura de rolos (como os métodos que usamos agora para ler em nossos computadores) limitadores e complicados demais, oferecendo-nos a possibilidade de folhear as páginas e escrevinhar nas margens. O passado dessa história está adiante de nós, na última página daquele futuro admonitório descrito por Ray Bradbury em Fahrenheit 451, no qual os livros não estão no papel, mas na mente.
Tal como o próprio ato de ler, uma história da leitura salta para a frente até o nosso tempo – até mim, até minha experiência como leitor - e depois volta a uma página antiga em um século estrangeiro e distante. Ela salta capítulos, folheia, seleciona, relê, recusa-se a seguir uma ordem convencional. Paradoxalmente, o medo que opõe a leitura à vida ativa, que fazia minha mãe tirar-me da minha cadeira e do meu livro e empurrar-me para o ar livre, esse medo reconhece uma verdade solene: “Você não pode embarcar de novo na vida, esta viagem de carro única, quando ela termina”, escreve o romancista turco Orhan Pamuk em O castelo branco, “mas, se tem um livro na mão, por mais complexo ou difícil que seja compreendê-lo, ao terminá-lo você pode, se quiser, voltar ao começo, ler de novo, e assim compreender aquilo que é difícil, assim compreendendo também a vida”.
Alberto Manguel, in História da leitura

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