segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Não se pode trocar tacos por enchiladas

Infelizmente, a esperança durou pouco. Logo no dia seguinte, Pedro Muzquiz apareceu na casa, acompanhado por seu respeitável pai, para pedir a mão de Tita em casamento. A chegada causou um enorme alvoroço, já que a visita era completamente inesperada. Alguns dias antes, Tita mandara um recado a Pedro por meio do irmão de Nacha, pedindo que desistisse do pedido. O irmão jurou que enviara o recado, e, mesmo assim, ali estavam eles. Mãe Elena recebeu-os na sala de visitas; foi extremamente delicada e explicou o motivo pelo qual Tita não podia casar.
Mas, se lhes interessa que Pedro se case, eu gostaria que levassem em consideração a minha filha Rosaura, que é apenas dois anos mais velha que Tita. Ela está cem por cento disponível e pronta para casar...
Com isso, Chencha quase deixou cair a bandeja com café e biscoitos, que trouxera à sala, em cima de Mãe Elena. Desculpou-se e voltou depressa à cozinha, onde Tita, Rosaura e Gertrudis esperavam que Chencha contasse os detalhes sobre o que acontecia na sala. Quando irrompeu na cozinha, todas interromperam o que faziam para não perder sequer uma palavra.
As moças estavam fazendo pães de Natal. Como o nome indica, esses pães são preparados na temporada natalina, mas naquela ocasião eram destinados à comemoração do aniversário de Tita. Logo ela teria 16 anos, e queria celebrar com um de seus pratos favoritos.
Não é impressionante? Sua mãe fala sobre estar pronta para casar como se estivesse servindo um prato de enchiladas! E o pior é que elas são completamente diferentes! Não se pode trocar tacos por enchiladas assim!
Chencha continuou com esse tipo de comentários enquanto contava às outras – à sua maneira, é claro – sobre a cena que acabara de testemunhar. Tita sabia que algumas vezes Chencha exagerava e distorcia as coisas, por isso não deixou a angústia tomar conta de seu coração. Ela se recusava a considerar como certo o que ouvira. Fingindo estar calma, continuou cortando os pães para as irmãs e Nacha rechearem.
É melhor usar massa feita em casa. Os pães podem ser comprados numa padaria, mas devem ser pequenos; os maiores não são bons para essa receita. Depois de rechear os pães, asse-os por dez minutos e sirva quente. Para melhores resultados, deixe os pães embrulhados em um pano por uma noite, no sereno. Com isso, eles ficarão impregnados com a gordura do chouriço.
Quando Tita acabou de embrulhar os pães que comeriam no dia seguinte, Mãe Elena entrou na cozinha e informou-as de que concordara com o casamento de Pedro – com Rosaura.
Ao ouvir a confirmação da história de Chencha, Tita sentiu seu corpo ser tomado por um arrepio gélido: com uma rajada veloz e penetrante, sentiu tanto frio que deixou seu rosto queimado e vermelho, vermelho como as maçãs que estavam ao seu lado. Aquele frio durou por muito tempo, e ela não sentiu alívio nem mesmo quando Nacha lhe disse o que escutara quando acompanhou Don Pascual Muzquiz e seu filho ao portão do rancho. Nacha seguiu-os, andando o mais silenciosamente que podia para ouvir a conversa entre pai e filho. Don Pascual e Pedro andavam devagar, falavam baixo em vozes controladas, dominadas pela indignação.
Por que você fez isso, Pedro? Será ridículo aceitar o casamento com Rosaura. O que aconteceu com o amor eterno que jurou à Tita? Não vai manter sua palavra?
Claro que manterei. Quando lhe dizem que não há jeito de se casar com a mulher que você ama, a única esperança em ficar perto dela é casar com a irmã. Você não faria o mesmo?
Nacha não conseguiu ouvir a resposta; Pulque, o cachorro do rancho, seguia correndo ao lado, latindo para um coelho que confundira com um gato.
Então você pretende casar sem amor?
Não, papai, vou casar com o amor enorme e imortal que sinto por Tita.
As vozes tornavam-se cada vez menos perceptíveis, mergulhadas no barulho das folhas secas em que pisavam. Era estranho que Nacha, que ouvia muito mal àquela época, dissesse ter escutado essa conversa. Mesmo assim, Tita a agradeceu por ter lhe contado, mas aquilo não alterou o sentimento gélido que começou a nutrir por Pedro. Dizem que os surdos não podem ouvir, mas podem entender. Talvez Nacha só tenha ouvido o que todos tinham medo de dizer. Naquela noite, Tita não conseguiu dormir; não conseguia encontrar palavras para aquilo que sentia. Era uma pena que os buracos negros ainda não tivessem sido descobertos, porque assim ela teria entendido o buraco negro no centro do seu peito, por onde fluía um frio infinito.
Sempre que fechava os olhos, ela via cenas do último Natal, quando Pedro e sua família tinham sido convidados para a ceia pela primeira vez; as cenas tornavam-se mais e mais vívidas, e o frio dentro dela tornava-se mais e mais cortante. Apesar do tempo que havia passado desde aquela noite, ela recordava perfeitamente os sons, os aromas, o modo como seu vestido novo arrastara pelo piso recém-encerado, o olhar de Pedro para ela... Aquele olhar! Ela caminhava em direção à mesa, carregando uma bandeja de doces de gema de ovos, quando sentiu o olhar quente dele queimando sua pele. Virou a cabeça e seus olhos se encontraram. Foi então que ela entendeu como uma rabanada fica ao ser mergulhada em óleo quente. O calor que invadiu seu corpo era tão real que temeu que, assim como a massa de farinha, ovos e leite ao fritar, começassem a sair borbulhas de todo o seu corpo – pelo rosto, estômago, coração, seios. E, incapaz de sustentar o olhar dele, Tita abaixou os olhos e atravessou a sala em direção ao local onde Gertrudis pedalava a pianola, tocando uma valsa chamada “Olhos da juventude”. Ela colocou a bandeja em uma mesinha no meio da sala, pegou uma taça de licor Noyo que estava diante de si e, sem consciência do que estava fazendo, sentou-se ao lado de Paquita Lobo, vizinha da família. Mas mesmo aquela distância entre ela e Pedro não era suficiente; ela sentia o sangue pulsando, queimando-lhe as veias. Um rubor espalhou-se pelo rosto, e, não importava o quanto se empenhasse, não encontrava um local para descansar os olhos. Paquita percebeu que algo a importunava.
Esse licor é muito forte, não é? – perguntou, com um olhar preocupado.
O quê?
Você parece um pouco alcoolizada, Tita. Está se sentindo bem?
Sim, obrigada.
Você já tem idade para tomar uma bebida em uma ocasião especial, mas, diga-me, sua diabinha, sua mãe autorizou? Posso ver que você está excitada, está tremendo, e, desculpe-me, mas devo dizer que é melhor você não beber mais. Você não vai querer fazer papel de boba.
Aquilo foi a gota d’água! Paquita pensar que ela estava bêbada. Tita não podia permitir que a menor suspeita se firmasse na mente de Paquita ou ela contaria à sua mãe.
O medo de Tita era suficiente para fazê-la esquecer Pedro por um momento e empenhar-se em convencer Paquita, de qualquer maneira, de que pensava com clareza e tinha a cabeça no lugar. Ela conversou com Paquita, fez fofocas, falou sobre coisas sem importância. Até mesmo lhe deu a receita do licor Noyo que supunha ter provocado tal efeito nela. A bebida é feita colocando-se de molho, na água, 115 gramas de pêssegos e 227 gramas de abricós, para tirar a pele; depois, eles são descascados, amassados e colocados em uma infusão com água quente por 15 dias. Então, a bebida é destilada. Após dissolver completamente 70 gramas de açúcar em água, adicione 113 gramas de água de flor de laranjeira. Essa mistura é mexida e coada. E para que não houvesse dúvida alguma pairando acerca do bem-estar físico e mental de Tita, como se fosse algo à parte, ela relembrou a Paquita que as garrafas de água contêm 2,016 litros, nem menos e nem mais.
Laura Esquivel, in Como água para chocolate

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