domingo, 23 de dezembro de 2018

Foda-se

Eu vivia estressado, preocupado com tudo, se perdia uma dessas ordinárias canetas bic, ficava ansioso, aflito, revirava a casa procurando e, se não a achasse, ficava infeliz. Quando perdi um livro, que aliás não era grande coisa, uma biografia da Safo ― a Safo é boa, a biografia é que era mal-escrita ―, eu entrei em depressão uns três dias.
Aconteceu quando perdi um par de sandálias havaianas.
Aconteceu até mesmo quando perdi uma camisa velha e rasgada.
Esse estado mental acabou causando efeitos colaterais: úlcera no estômago, dores de cabeça, bursite e, o que é pior ― nem sei como dizer isso ―, impotência sexual.
O que está havendo com você”, perguntou a minha namorada, depois que não consegui, pela terceira vez, ter uma ereção, apesar dos esforços da bela jovem ― sim, ela era bonita, tinha um corpo perfeito.
Consultei um médico especialista.
O que está havendo comigo, doutor? Tenho apenas quarenta anos e já estou impotente?”
Meu caro”, disse o médico, vou lhe dar uma informação confidencial. Quase todos os meus clientes que sofrem de impotentia coeundi…
Cortei a fala do médico.
O que é isso?”
Disfunção erétil. Mas como eu dizia, a maioria dos meus clientes impotentes tem cerca de quarenta anos. Há várias teorias para essa…”
Cortei novamente.
O que posso fazer para acabar com isso?”
Procure um psicanalista. Nesse meio-tempo, tome uma dessas pílulas”, disse ele escrevendo uma receita.
Comprei o remédio que ele receitou e telefonei para Helena ― é esse o nome da minha namorada ―, combinando um encontro em minha casa naquela noite.
Tomei a pílula e passei a tarde inteira andando de um lado para o outro. Vez por outra apalpava o meu pênis, mas ele estava murcho, parecia até ter diminuído de tamanho. Já disse que sou um sujeito preocupado, que vive apreensivo, temeroso de que suceda algo negativo, e com razão, até hoje não achei a minha caneta bic.
Helena chegou linda, me abraçou, me beijou, disse carinhosamente que estava morrendo de saudades minhas.
Fomos para a cama. Ah, meu Deus, não posso me lembrar sem uma horrenda pungência o que aconteceu: não consegui que o meu pênis ficasse ereto, apesar dos esforços da Helena.
Ela saiu da cama e se vestiu em silêncio. Eu também fiquei calado, inerte, sob o lençol, com vontade de cobrir a cabeça ou pular pela janela. Não sei o que se passava pela cabeça dela, o seu rosto estava triste, talvez pensasse que a culpa era dela, isso acontece muito, o homem brocha e a mulher se acha responsável; ou então sentia pena de mim, quarenta anos, um belo apartamento e impotente.
Fui ao psicanalista lacaniano indicado pelo médico que me receitara aquelas pílulas inúteis.
Era um homem careca, de óculos, orelhas grandes, talvez não fossem tão grandes assim, a calvície dava-me essa impressão, dedos curtos e uma laringe proeminente.
Ouviu calado, com ar pensativo, a minha história.
As pressões sociais… ambientais… perspectivas…”
Sua fala era toda entrecortada.
Continue…”, ele acrescentou.
Já contei tudo”, eu disse.
Família… pai… mãe…”
Não tenho família.”
Explique isso…”
Meus pais morreram quando eu era criança e fui criado por uma tia…”
Ah”, ele disse, como se tivesse descoberto a pólvora. E acrescentou: “A sessão está encerrada, mas nossa próxima pode demorar bem mais.”
Perguntei se podia pagar com cheque ou cartão de crédito.
Como lhe disse ao marcarmos a consulta, eu só aceito como pagamento dinheiro em espécie.”
Paguei e não voltei mais lá.
Fui para casa pensando, quem podia me curar era eu mesmo. Descobri que eu gostava de ficar preocupado, acho que é o que acontece com todos os estressados. Mas eu precisava me livrar disso.
Peguei uma caneta-tinteiro de boa marca e deixei no balcão do banco. Cheguei em casa e disse para mim mesmo: E agora, vai sofrer?
Mas não sofri.
Durante um mês perdi coisas propositadamente e não sofri. Até que um dia perdi, sem querer, um relógio de pulso. Então, o sofrimento começou a comer por dentro, mas disse, na verdade, gritei, “Foda-se o relógio de pulso!”.
Fui para a janela e gritei novamente, “Foda-se o relógio de pulso!”.
Senti uma tranquilidade, uma harmonia interior que me deixou feliz. Eu descobrira uma palavra mágica.
Então, fui a um joalheiro e pedi que fizesse em ouro uma pequena placa com a palavra “Foda-se”. A plaqueta num cordão de ouro foi colocada no meu pescoço. Não a tiro nem para tomar banho. Nem para fazer amor com a minha adorada Helena.
Querido, você está uma fera, estou toda esfolada.”
Mulher gosta de ficar sentindo não só na alma, mas também no corpo, as marcas e cicatrizes do amor.
Ontem eu perdi o meu carro. Ele não estava no seguro. Fui no boteco, pedi um chope, ergui o copo, disse “foda-se” e tomei um gole. O chope estava uma delícia.
Sei que tem gente que não vai acreditar nesta história que estou contando.
Foda-se.
Rubem Fonseca, in Amálgama

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