quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

A segunda vida de Jeremias Carrasco

Todos podemos, ao longo de uma vida, conhecer várias existências. Eventualmente, desistências. Aliás, o mais habitual. Poucos, contudo, têm a possibilidade de vestir uma outra pele. A Jeremias Carrasco aconteceu-lhe quase isso. Despertou, após um fuzilamento negligente, numa cama demasiado curta para o seu metro e oitenta e cinco, e tão estreita que, se descruzasse os braços, ambos penderiam, os dedos tocando o chão de cimento, cada um para o seu lado. Sentia fortes dores na boca, pescoço e peito, e uma terrível dificuldade em respirar. Viu, ao abrir os olhos, um teto baixo, descolorido e estalado. Uma pequena osga, pendurada mesmo por cima dele, estudava-o com curiosidade. A madrugada descia, ondulante e perfumada, através de uma minúscula janela, situada na parede em frente, junto ao teto.
Morri, pensou Jeremias. Morri, e aquela osga é Deus.
Supondo que a osga fosse Deus, dir-se-ia hesitante no destino a dar-lhe. Tal indecisão parecia a Jeremias mais estranha do que ver-se face a face com o Criador, e este assumir a forma de um réptil. Jeremias sabia, desde há muito, estar destinado a arder pela eternidade fora nas chamas do Inferno. Matara, torturara. E se ao princípio o fizera por dever, cumprindo ordens, a seguir tomara-lhe o gosto. Só se sentia desperto, inteiro, enquanto corria através da noite, perseguindo outros homens.
Decide-te, disse Jeremias à osga. Ou melhor, tentou dizer, mas o que lhe saiu da boca foi apenas um surdo novelo de sons. Experimentou de novo e, como num pesadelo, repetiu-se o escuro borbotar.
Não tentes falar. Aliás, não falarás nunca mais.
Jeremias julgou, por instantes, que fosse Deus condenando-o ao silêncio eterno. Depois rodou os olhos para a direita e viu uma mulher gordíssima encostada à porta. As mãos, de dedos mínimos e frágeis, bailavam diante dela enquanto falava:
Ontem, a tua morte foi notícia nos jornais. Publicaram uma fotografia, um pouco antiga, quase não te reconheci. Dizem que foste um diabo. Morreste, reencarnaste, tens uma nova oportunidade. Aproveita-a.
Madalena trabalhava há cinco anos no Hospital Maria Pia. Antes disso fora freira. Uma vizinha assistira, de longe, ao fuzilamento dos mercenários e alertou-a. A enfermeira conduziu sozinha até ao local. Um dos homens ainda vivia. Uma bala atravessara-lhe o peito, num percurso miraculoso, perfeito, sem atingir qualquer órgão vital. Um segundo projétil entrou-lhe pela boca, estilhaçando os dois incisivos superiores, e perfurando-lhe depois a garganta.
Não entendo o que aconteceu. Tentaste agarrar a bala com os dentes? Riu-se, agitando o corpo. A luz parecia rir-se com ela: Bons reflexos, sim senhor. E nem foi má ideia. Se a bala não tivesse encontrado os dentes, a trajetória seria outra. Ter-te-ia matado ou deixado paralítico. Achei melhor não te levar para o hospital. Cuidariam de ti e quando estivesses bom voltariam a fuzilar-te. Assim, paciência, tratei-te eu mesma com os poucos recursos disponíveis. Resta-me tirar-te de Luanda. Não sei por quanto tempo conseguirei esconder-te. Se os camaradas te encontram, fuzilam-me também a mim. Assim que for possível viajaremos para sul.
Escondeu-o durante quase cinco meses. Através da rádio, Jeremias foi seguindo a difícil progressão das tropas governamentais, apoiadas por cubanos, contra a improvisada e volátil aliança entre a UNITA, a FNLA, o exército sul-africano e mercenários portugueses, ingleses e norte-americanos.
Jeremias dançava na praia, em Cascais, com uma loira platinada, e nunca estivera na guerra, nunca matara, nunca torturara ninguém, quando Madalena o sacudiu:
Vamos, capitão! É hoje ou nunca.
O mercenário ergueu-se da cama, com esforço. A chuva estalava na escuridão, abafando o ruído do escasso trânsito que circulava àquela hora. Viajaram numa velha carrinha, uma Citroën dois cavalos, com a carroceria de um amarelo muito gasto, meio roída pela ferrugem, mas com o motor em perfeito estado. Jeremias ia estendido, atrás, oculto por vários caixotes com livros.
Livros infundem respeito, explicou a enfermeira: Se levasse caixotes carregados de garrafas de cerveja, os soldados iriam revistar o veículo de uma ponta à outra. Além disso, chegaria a Mossâmedes sem uma única garrafa.
O estratagema revelou-se acertado. Nos numerosos controles pelos quais passaram, os militares perfilavam-se ao verem os livros, pediam muita desculpa a Madalena, e deixavam-na seguir. Desembocaram em Mossâmedes numa manhã sem ar. Jeremias viu, espreitando através de um pequeno buraco, aberto na chapa ferrugenta do veículo, a pequena cidade girando ao redor de si mesma, lenta e atordoada, como um bêbado num funeral. Meses antes, as tropas sul-africanas haviam passado por ali, a caminho de Luanda, desbaratando facilmente uma tropa formada por pioneiros e mucubais.
Madalena estacionou a carrinha diante de um sólido casarão azul. Saiu, deixando Jeremias a assar lá dentro. O mercenário suava muito. Mal respirava. Achou preferível sair, arriscando-se a ser preso, a morrer assim. Não conseguia afastar os caixotes. Começou aos pontapés na chapa. Acudiu um velho.
Quem está aí?
Escutou então a voz suave de Madalena:
Levo um cabrito para o Virei.
Um cabrito para o Virei?! Ah! Ah! Ah! Um cabrito para o Virei!
Com a carrinha em marcha entrava algum ar fresco. Jeremias sossegou. Andaram mais uma hora, aos saltos, por caminhos secretos, através de uma paisagem que, a Jeremias, parecia feita por inteiro de duro vento, pedra, poeira e arame farpado. Finalmente, detiveram-se. Um alarido de vozes cercou o veículo. A porta traseira foi aberta e alguém retirou as caixas. Surgiram dezenas de rostos curiosos. Mulheres com o corpo pintado de vermelho. Algumas já maduras. Outras ainda adolescentes, de seios arrebitados e mamilos túrgidos. Rapazes altos, elegantíssimos, com um tufo de cabelo no topo da cabeça.
O meu falecido pai nasceu no deserto. Foi enterrado aqui. Esta gente tem-lhe muita devoção, explicou Madalena: Vão acolher-te e esconder-te o tempo que for necessário.
O mercenário sentou-se no chão, ajeitando os ombros, como um rei que desfilasse nu, a sombra espinhosa dum mutiati. Um grupo de crianças rodeou-o, tocando-o, puxando-lhe os cabelos. Os rapazes riam alto. Intrigava-os o áspero silêncio do homem, o olhar distante, o espetro de um passado que intuíam violento e agitado. Madalena despediu-se dele com um leve aceno de cabeça:
Espera aqui. Virão buscar-te. Quando tudo acalmar poderás cruzar a fronteira para o Sudoeste Africano. Suponho que terás bons amigos entres os carcamanos.
Decorreriam anos. Décadas. Jeremias jamais cruzou a fronteira.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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