domingo, 9 de dezembro de 2018

A jovem que trocava as letras

Mariana telefonou para Leonardo. Angustiada:
Perdi o b.
Perdeu o b?
Não consigo mais escrever o b.
Como? Que história é essa?
Uma coisa estranha. Faz três dias que venho notando. A princípio imaginei que fosse distração, sou uma digitadora primária, uso apenas dois dedos. Depois percebi que, ao pressionar o b, sai um s.
Defeito do teclado. Tão simples.
Não é. Veio um técnico, testou. Pressionava o b e saía o b. Eu pressionava e saía o s.
Será um problema neurológico?
Por que haveria de ser? O computador não tem neurônios como nosso cérebro. E um neurologista, pelo que sei, cuida de neurônios.
Achei que sim.
Ele decidiu fazer um ligeiro teste. Leonardo adorava testes, comprava revistas de palavras cruzadas apenas para fazê-los, conhecia truques. Pediu à Mariana:
Venha à minha casa.
Em dez minutos ela estava lá, porque além de tudo tinha uma queda pelo garotão. Um gato! Ligaram o computador.
Escreva boiota.
O que é isso?
Uma palavra. Boiota.
Não escrevo o que não sei. É soiola?
Soiola, não. Boiola. Boiola é bicha. Boiota é mentecapto.
Ela digitou. Saiu soiota na tela. Leonardo escreveu certo, boiota.
Viu?
Agora, escreva botrópico.
O que é isso?
O mesmo que laquético.
E o que é laquético?
Não sei.
Ela digitou sotrópico. E assim, durante algum tempo, ele foi dizendo palavras como bracajá, brévia, bródio, buço, bucaneiro, bazofiar, baronato. Ela digitava sracajá, srécia, sródio, suço, sucaneiro, sazofiar, saronato.
Não adianta mesmo.
Temos de encontrar um especialista em trocar palavras. Deve ser um vírus novo, há tantos por aí, desconhecidos.
Dias depois, Mariana ligou.
Agora piorou. Não consigo pronunciar o s.
Também o s?
Não o s. O s.
Pois é isso que estou entendendo.
Não, não está. Lembra-se? Havia uma letra que eu trocava pela outra. Quando digitava aparecia o s. Naquele tempo eu podia pronunciar aquela letra, a primeira de soiota.
Boiota.
Só que agora não consigo mais pronunciar a primeira letra, aquela, a verdadeira.
Não fala mais o b? Quando quer falar o b, fala o s?
Isso!
Passou uma semana, Leonardo ligou para ela.
Continua tudo igual?
Continua.
Ficou naquela letra?
Ficou. Mas descobri um colega de trabalho que não consegue digitar, nem pronunciar o s. Quando quer falar ou digitar, aparece o s. Exatamente o contrário de mim.
Ele ironizou:
O jeito é vocês se casarem, para acertar as tetras.
Tetras?
É. Foi o que disse. Tetras.
E o que significa?
As tetras do alfabeto.
Ah, as letras. Então, você está trocando o l pelo t? Diga limão.
Timão.
Linha.
Tinha.
Viu? Agora, você precisa procurar quem faça o contrário. Quem troque o t pelo l, e assim acertam as letras.
Menos de um mês depois, se viu que cada um trocava uma letra por outra. A por h, x por d, p por r. E todos esqueceram a trivialidade dos empregos, descalabros do governo, congestionamentos, angústias amorosas, e centenas de outras coisas que compõem o cotidiano. O que se viu, e se vê, é uma intensa busca do parceiro ideal, aquele que troca as letras ao contrário da de cada um. Vive-se, agora, o tempo das trocas. Difícil como ser feliz.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

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