quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Viagem, amor e miséria

Viajo porque preciso, volto porque te amo (direção de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes) foi filmado no interior de cinco estados do Nordeste. A ideia inicial dos dois cineastas era fazer um documentário sobre as feiras do sertão. Entre a primeira e a última filmagem houve uma interrupção de nove anos, e a montagem final é, de fato, uma ficção sobre a viagem e o amor, sem perder uma dimensão crítica sobre a sociedade brasileira. O filme transcende o registro de mero documento, transmite emoção ao espectador e convida-o a refletir sobre a região e as pessoas que nela vivem e trabalham.
Nessa versão final os diretores introduziram a voz de um geólogo (José Renato) que faz uma pesquisa de campo para a construção de um canal. Ele é o personagem central do filme, mas não vemos qualquer traço físico dele, apenas ouvimos sua voz, uma voz em vários registros de entonação, como se fosse um diário falado, em cujo centro situa-se Galega, ex-mulher de José Renato. Esse é um dos achados do filme: um personagem ausente, que o espectador imagina. Mas ele está presente através de sua voz e também de seu olhar. É como se ele estivesse atrás da câmera, atento ao que vê e observa. A voz não é menos importante que a imagem: ambas se complementam, alternando a subjetividade do narrador com a vida de cada lugar visitado.
Outro achado foi relacionar o estudo do solo com a desilusão amorosa. Uma sondagem no interior da terra árida, cujo contraponto é uma sondagem da alma das personagens. Dessa confluência insólita resulta uma narrativa tensa, de grande beleza, em que a necessidade de uma viagem profissional relaciona-se com o impasse de uma relação amorosa. Mas há ainda a solidão e o desencanto que marcam a vida de nordestinos pobres, de prostitutas desvalidas, mulheres que, a meu ver, mantêm algum parentesco com Iracema, a protagonista do grande filme de Jorge Bodanzky.
Apesar dos deslocamentos do narrador, Viajo porque preciso… é um filme sem muita ação, ou sem muitas peripécias. Durante sua viagem, o narrador alterna o trabalho enfadonho e contrariado de geólogo com as reminiscências, confissões e desabafos de uma história passional fracassada. A desilusão do narrador e os anseios de uma das prostitutas convergem para um impasse, que é individual e, até certo ponto, coletivo.
Como acontece com os bons romances, que se revelam com mais intensidade ao ser relidos, esse filme convida o espectador a assisti-lo duas vezes. Na segunda, você une os pontos aparentemente soltos das imagens e do relato do geólogo, e percebe que na sequência surpreendente das cenas finais há uma saída para o enfado e o desencanto do narrador. Ainda assim, prevalece uma sensação de impasse para as pessoas que falam de sua vida, algumas também viajantes ocasionais, romeiros extasiados pela fé, mulheres que sonham com uma vida melhor, ou pobres artistas circenses, todos eles “brasileiros que nem eu”, como disse Mário de Andrade num poema sobre os seringueiros da Amazônia.
Irandhir Santos, o único ator profissional, é invisível, mas sua voz em off — o fluxo oral do que ele vê, sente e reflete — é suficiente para que o espectador participe de sua viagem e compartilhe seu drama, seus anseios e suas frustrações. E nisso ele se assemelha a uma complexa personagem de ficção.
Numa ótima entrevista ao crítico e escritor Jean-Claude Bernardet, Marcelo Gomes ressalta que “o som dá dinamismo à viagem, ele muda de um momento para outro […] E essa dinâmica internaliza mais essa viagem”. Karim Aïnouz assinala que o cinema tem um potencial literário: “o poder de fazer a gente imaginar […] e as palavras vêm de alguma maneira iluminar uma imagem”.
De fato, essa voz se remete a outra viagem, a uma busca interior que é uma tentativa de compreender a si mesmo. Esse diário falado é também matriz de uma história que dialoga com o mundo do sertão e com o espectador. Nem sempre há uma sincronia entre a voz e as imagens. Às vezes a câmera, em silêncio, foca uma paisagem, o ambiente paupérrimo de uma casa, um rito religioso, de modo que o espectador concentra sua atenção nessas imagens, que também contam uma história. Em alguns momentos os sertanejos falam de seus sonhos numa região do Brasil em que a modernidade e a euforia do consumo ainda são quimeras. Ou sonhos irrealizados. À viagem contrariada, vazia de vontade — Viajo porque preciso —, contrapõe-se ironicamente o desejo da volta para um lugar onde o amor é dúvida ou ilusão.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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