sábado, 10 de novembro de 2018

Um mundo em que nada é resoluto

Existe, nesta terra, algo que escape à dúvida, à exceção da morte? - à única coisa que é certa no mundo? Continuar a viver duvidando de tudo - eis um paradoxo que não é dos mais trágicos, uma vez que a dúvida é bem menos intensa, bem menos difícil do que o desespero. A mais frequente dúvida é aquela abstrata, em que se compromete apenas uma parte do ser, contrariamente ao desespero, em que a participação é orgânica e total. Um certo diletantismo, um tanto quanto superficial caracteriza o ceticismo em visto do desespero, este fenômeno tão estranho e complexo. Eu faço bem em duvidar de tudo e em encarar o mundo com um sorriso de desprezo - e isto não me impedirá de comer, de dormir tranquilamente ou de me casar. No desespero, do qual somente vivendo se extrai a profundidade, esses atos somente são possíveis pagando o preço de esforços e sofrimentos. Nos cumes do desespero, ninguém tem mais direito ao sono. Assim, um desesperado autêntico não esquece jamais sua tragédia: sua consciência preserva a dolorosa atualidade de sua miséria subjetiva. A dúvida é uma inquietude ligada aos problemas e às coisas, e procede do caráter insolúvel de toda grande questão. Se os problemas essenciais pudessem ser resolvidos, o cético voltaria a um estado normal. Que diferença em relação à situação do desesperado, que nem mesmo a resolução de todos os problemas tornaria menos inquieto, uma vez que sua inquietude brota da própria estrutura da existência. Não são os problemas, então, mas as convulsões e chamas interiores que torturam. Pode-se lamentar que nada se resolva aqui na terra; ninguém, apesar disso, suicida-se devido a isto - a inquietude filosófica influi muito pouco na inquietude total de nosso ser. Eu prefiro mil vezes uma existência dramática, atormentada pelo seu destino e submetida ao suplício das chamas mais ardentes, à existência do homem abstrato, atormentado por questões não menos abstratas e que somente lhe afetam superficialmente. Eu desprezo a ausência do risco, da loucura e da paixão. Quão fecundo, em vista disto, é um pensamento vivo e apaixonado, irrigado pelo lirismo! Quão dramático e interessante é o processo por meio do qual espíritos inicialmente atormentados por problemas puramente intelectuais e impessoais, espíritos objetivos a ponto de esquecerem-se de si, são, uma vez surpreendidos pela doença e sofrimento, fatalmente levados a refletir sobre sua subjetividade e sobre as experiências a afrontar. Os homens objetivos e ativos não encontram neles mesmos recursos suficientes para fazer de seu destino um problema. Para que estes se tornem subjetivos e universais a uma só vez, eles devem descer, um a um, todos os degraus de um inferno interior. Enquanto não se está reduzido a cinzas, não se pode obter a filosofia lírica - uma filosofia em que a ideia tem raízes tão profundas quanto a poesia. Acessa-se, então, uma forma superior de existência, onde o mundo e seus problemas inextrincáveis não merecem sequer mais desprezo. Não é uma questão de excelência nem de valor particular do indivíduo; fato é, simplesmente, que nada, fora de nossa agonia pessoal, nos interessa mais.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Nenhum comentário:

Postar um comentário