sábado, 10 de novembro de 2018

Bandeira no trampolim

Ainda de calças curtas, sem entender bem o que acontecia, descobri a poesia de Manuel Bandeira. Na sala de aula, enquanto o professor falava das escolas literárias e da importância das influências, eu lia Bandeira, o livro camuflado entre meus cadernos, como algo vergonhoso ou obsceno. Lia e sufocava.
Um dia, um professor desmascarou minha paixão secreta. Perguntou-me o que tanto lia e, ainda com mais raiva, por que eu escondia meu livro. Lembro apenas que me veio um desses silêncios opressivos, que surgem entre a timidez e o orgulho, e que deixam os meninos com cara de patetas, mas a nós, homens maduros, com a máscara de sábios.
Indiferente às minhas razões, o professor exigiu que eu passasse a anotar as lições expostas no quadro-negro. E que guardasse os poemas de Bandeira – lembro bem de suas palavras – para “a hora certa”. Continuei a ler Bandeira nos intervalos das aulas, nas mesas do refeitório ou escondido no banheiro dos alunos. Tornou-se uma paixão secreta.
Nunca soube explicar o que me prendeu a seus versos. Nem a Bandeira, que me trazia a sensação vaga de desmaio, nem aos poemas rochosos de João Cabral, que descobri pouco depois e que me feriam como socos. Nunca entendi direito o sentimento de plenitude, de ser erguido em pleno ar, que me tomou quando li os primeiros sonetos de Vinicius. Eles são os meus clássicos, os livros que me fundaram.
Agora, à sua sombra, me cai nas mãos um livro que pretende regrar a experiência devastadora por que passei. Chama-se O prazer de ler os clássicos, do norte-americano Michael Dirda (Martins Fontes, tradução de Rodrigo Neves). Conceituado crítico do Washington Post, Dirda faz um esforço comovente para nos aproximar dos grandes clássicos. Quero reafirmar, logo, que seu esforço, de fato, me comove. Espelho-me um pouco nele – eu que, há poucas semanas, só para dar um exemplo, terminei de escrever 45 verbetes para a versão brasileira do dicionário britânico Mil livros para ler antes de morrer, a ser lançado em breve pela Sextante.
Todos (eu mesmo) temos a ilusão de que é possível transmitir uma paixão. E apostamos nisso. No caso de Michael Dirda, os obstáculos se agravam, pois todos sabemos o quanto a expressão “os clássicos” nos assusta e intimida. A ela associamos o peso desagradável dos anos e o desconforto que nos provocam as coisas antigas. Parecem exigir de nós, ainda, um deslocamento excessivo, e perigoso, em relação ao presente. Achamos, todos, que devemos ler os clássicos, que é importante ler os clássicos, mas quase nunca os lemos.
O problema é: que clássicos? Em um vigoroso esforço didático, Dirda – para facilitar a vida do leitor, para protegê-lo – nos oferece uma visão “fatiada” dos clássicos universais. De um lado as “fantasias jocosas”, de outro “os mistérios do amor”, mais à frente os “relatos de viagem” e logo depois as “visões enciclopédicas”. Nessas prateleiras – como um respeitável gerente de livraria –, ele distribui autores extraordinários como Plutarco, Cícero, Espinosa, W.H. Auden, Kipling e Pound.
É sensato pensar: aqueles que dão os primeiros passos no obscuro cenário da literatura necessitam de alguma ordem, ou se perderão. Eu mesmo, muitas vezes, penso assim. Outras vezes, não penso. Volto a minhas calças curtas. Enquanto eu lia Bandeira, meu professor expunha no quadro-negro – como uma receita de bolo – a grade consoladora dos grandes períodos literários. Arcadismo, Romantismo, Realismo, Simbolismo – e, quase sempre, se detinha aí, pois o Modernismo lhe parecia impróprio para meninos. Eu mesmo, agora, enquanto escrevia os verbetes dos Mil livros, me apeguei, com fervor, a essas categorias – clássicas (eis a palavra) e, por isso, inevitáveis. É verdade que, tanto quanto consegui, anotei as lições de meu professor e as estudei em casa.
É verdade, também, que elas, ainda hoje, me orientam, como uma pequena lanterna que empunhamos no meio de uma floresta. Quem, na escuridão, pode dispensá-la? Eu, pelo menos, não posso, pois sei que – como óculos que pesam sobre o nariz e apertam a testa – elas me ajudam a ver. No entanto, preciso perguntar: foi ali, entre aqueles séculos bem divididos e lustrados, ou foi no fogo de Bandeira, que a literatura me pegou?
Talvez a resposta correta possa ser: eu não conseguiria chegar a um se não tivesse o outro. Tudo depende, também, de como lemos as lições que nos transmitem; para mim, nomes como Romantismo ou Simbolismo despertam, até hoje, o mesmo calafrio que sinto quando ouço falar das paredes do Everest ou do mar de Madagascar. Em sua introdução, o próprio Michael Dirda se apressa em afastar a literatura de qualquer forma de adestramento. Diz: “Os clássicos são clássicos não por serem educativos, mas porque as pessoas consideraram que mereciam ser lidos, geração após geração, século após século”.
Se hoje, enquanto leio Dirda, escrevo sobre Bandeira – que não aparece no livro de Dirda –, só confirmo suas palavras. Talvez devamos ler O prazer de ler os clássicos não para lembrar, mas para esquecer. Ele é o portal que nos conduz ao grande jardim. Como a Alice, de Lewis Carroll, diante de sua porta minúscula, que luta e luta para atravessar e assim chegar à luz do sol, nós também precisamos do esforço de uma travessia.
Penso nos nadadores olímpicos especializados em saltos ornamentais, cuja tarefa seria impossível sem a existência dos trampolins. Postados sobre eles, se aprumam, respiram, planejam seus movimentos. Da plateia, ansiosos, nós os observamos. Mas, a partir do momento em que eles saltam, aquele trampolim não existe mais, é só uma prancha de madeira que ficou, esquecida, lá no alto. Tudo o que nos interessa agora é a dança dos corpos no ar.
E no entanto, sem o trampolim – sem os livros de referência, sem os grandes resumos –, a beleza desse salto seria impossível. Contudo, não foi no trampolim, mas em si mesmos, na sensação de prazer provocada pela água, que esses saltadores (como eu em Bandeira) descobriram sua paixão. Mas sem um solo firme de onde partir, sem esse velho trampolim, nossa paixão não seria nada.
José Castello, in Sábados Inquietos

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