De
início, mantinha meus livros em rigorosa ordem alfabética, por
autor. Depois passei a separá-los por gênero: romances, ensaios,
peças de teatro, poemas. Mais tarde tentei agrupá-los por idioma, e
quando, durante minhas viagens, era obrigado a ficar apenas com
alguns, separava-os entre os que dificilmente lia, os que lia sempre
e aqueles que esperava ler. Às vezes minha biblioteca obedecia a
regras secretas, nascidas de associações idiossincráticas. O
romancista espanhol Jorge Semprún mantinha Carlota em Weitnar,
de Thomas Mann, entre seus livros sobre Buchenwald, o campo de
concentração em que estivera, porque o romance começa com uma cena
no Hotel Elefante, em Weimar, para onde Semprún foi levado depois de
sua libertação. Certa vez, pensei que seria divertido construir uma
história da literatura a partir de agrupamentos como esse,
explorando, por exemplo, as relações entre Aristóteles, Auden,
Jane Austen e Marcel Aymé (em minha ordem alfabética), ou entre
Chesterton, Sylvia Townsend Warner, Borges, são João da Cruz e
Lewis Carrol (dentre os que mais gosto). Parecia-me que a literatura
ensinada na escola — na qual se explicavam as ligações entre
Cervantes e Lope de Vega com base no fato de serem do mesmo século e
na qual Platero e eu, de Juan Ramón Jiménez (uma história
floreada da paixão tola de um poeta por um burro), era considerado
uma obra-prima - era tão arbitrária ou constituía uma escolha tão
aceitável quanto a literatura que eu mesmo podia construir, baseado
nas minhas descobertas ao longo da estrada sinuosa de minhas próprias
leituras e no tamanho de minhas próprias estantes. A história da
literatura, tal como consagrada nos manuais escolares e nas
bibliotecas oficiais, parecia-me não passar da história de certas
leituras — mais velhas e mais bem informadas que as minhas, porém
não menos dependentes do acaso e das circunstâncias.
Em
1966, um ano antes de terminar o colégio, quando se instalou o
governo militar do general Onganía, descobri um outro sistema de
organização dos livros. Sob suspeita de serem comunistas ou
obscenos, certos títulos e determinados autores foram colocados na
lista dos censores, e, nas batidas policiais cada vez mais frequentes
em cafés, bares, estações de trem ou simplesmente na rua,
tornou-se tão importante não ser visto com um livro suspeito nas
mãos quanto estar com os documentos apropriados. Os autores
proibidos - Pablo Neruda, J. D. Salínger, Maximo Gorki, Harold
Pinter - formavam uma outra e diferente história da literatura cujas
ligações não eram evidentes nem duradouras e cuja comunhão
revelava-se exclusivamente pelos olhos meticulosos do censor. Mas não
são apenas os governos totalitários que temem a leitura. Os
leitores são maltratados em pátios de escolas e em vestiários
tanto quanto nas repartições do governo e nas prisões. Em quase
toda parte, a comunidade dos leitores tem uma reputação ambígua
que advém de sua autoridade adquirida e de seu poder percebido. Algo
na relação entre um leitor e um livro é reconhecido como sábio e
frutífero, mas é também visto como desdenhosamente exclusivo e
excludente, talvez porque a imagem de um indivíduo enroscado num
canto, aparentemente esquecido dos grunhidos do mundo, sugerisse
privacidade impenetrável, olhos egoístas e ação dissimulada
singular (“Saia e vá viver!”, dizia minha mãe quando me via
lendo, como se minha atividade silenciosa contradissesse seu sentido
do que significava estar vivo.) O medo popular do que um leitor possa
fazer entre as páginas de um livro é semelhante ao medo intemporal
que os homens têm do que as mulheres possam fazer em lugares
secretos de seus corpos, e do que as bruxas e os alquimistas possam
fazer em segredo, atrás de portas trancadas. O marfim, de acordo com
Virgílio, é o material de que é feito o Portal dos Sonhos Falsos;
segundo Sainte-Beuve, é também o material de que é feita a torre
do leitor.
Borges
disse-me certa vez que, durante uma das manifestações populistas
organizadas pelo governo de Perón em 1950 contra os intelectuais da
oposição, os manifestantes gritavam: “Sapatos sim, livros não”.
A resposta - “Sapatos sim, livros sim”- não convenceu ninguém.
Considerava-se a realidade a dura, a necessária realidade em
conflito irremediável com o mundo evasivo e onírico dos livros. Com
essa desculpa, e com efeito cada vez maior, a dicotomia artificial
entre vida e leitura é ativamente estimulada pelos donos do poder.
Os regimes populares exigem que esqueçamos, e portanto classificam
os livros como luxos supérfluos; os regimes totalitários exigem que
não pensemos, e portanto proíbem, ameaçam e censuram; ambos, de um
modo geral, exigem que nos tornemos estúpidos e que aceitemos nossa
degradação docilmente, e portanto estimulam o consumo de mingau.
Nessas circunstâncias, os leitores não podem deixar de ser
subversivos.
Alberto
Manguel, in História da leitura
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