domingo, 4 de novembro de 2018

Êxtase

Ignoro que sentido possa ter, num espírito cético para o qual neste mundo não haja nada que se resolva, o êxtase - o mais revelador e rico, o mais complexo e perigoso -, o êxtase das fundações últimas da vida. Este tipo de êxtase não nos concede nem certeza explícita, nem um saber definido, mas o sentimento de uma participação essencial é aí tão intenso que ele ultrapassa todos os limites e categorias do conhecimento comum. É como se, neste mundo de obstáculos, de miséria e de tortura, uma porta se abrisse sobre o próprio cerne da existência e nós pudéssemos tirar da mais simples, a mais essencial das visões e o mais magnífico dos enlevos metafísicos. Creríamos então ver uma camada superficial feita de existência e formas individuais fundir-se para nos conduzir às regiões mais profundas. Seria o verdadeiro sentimento metafísico da existência possível sem a eliminação desta camada superficial? Somente uma existência purgada de seus elementos contingentes é de natureza a permitir o acesso a uma zona essencial. O sentimento metafísico da existência é de ordem extática e toda metafísica mergulha suas raízes numa forma particular de êxtase. Erramos ao admiti-la apenas numa variante religiosa. Existe, de fato, uma multiplicidade de formas que, dependendo de uma configuração espiritual específica ou de um temperamento, não conduzem necessariamente à transcendência. Por que não existiria, então, um êxtase da existência pura, de raízes imanentes à vida? Não seria ele cumprido num aprofundamento que rasga o véu superficial para permitir acesso ao cerne do mundo? Poder tocar as raízes deste mundo, realizar a embriaguez suprema, a experiência do original e do primordial, é provar um sentimento metafísico proveniente do êxtase dos elementos essenciais do ser. O êxtase como exaltação da imanência, da incandescência, da visão da loucura deste mundo - eis uma base para a metafísica - válida mesmo para os últimos instantes, para os momentos do fim... O verdadeiro êxtase é perigoso - ele se parece com a última fase de iniciação dos mistérios egípcios, onde a fórmula: "Osíris é uma divindade negra" substituía o conhecimento explícito e definitivo. Em outros termos, o absoluto permanece, enquanto tal, inacessível. Eu só vejo no êxtase das raízes últimas uma forma de loucura, não de conhecimento. Esta experiência somente é possível na solidão - naquela que nos dá a impressão de planar sobre o mundo. Ou... A solidão acaso não oferece condições propícias à loucura? Não é característico que a loucura possa se produzir no mais cético dos indivíduos? Não é verdade que a loucura do êxtase se revela plenamente por meio da presença da mais estranha das certezas e da visão mais essencial - ambas sobre um fundo de dúvida e desespero?
Ninguém saberia, em verdade, conhecer o estado de êxtase sem a experiência prévia do desespero, pois um e outro comportam purificações que, ainda que diferentes pelo conteúdo, são de igual importância.
As raízes da metafísica são todas tão complicadas quanto as da própria existência.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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