Aprisionado
por caçadores, um falcão vive, durante longos anos, entre os
homens. Consegue, enfim, fugir e retorna às montanhas. Leva no
corpo, porém, uma rede de guizos, usada pelos caçadores para
vigiá-lo. Ao vê-lo com a estranha capa de prata, os falcões o
rejeitam. “Entre nós, não existem redes nem guizos”, dizem.
Mesmo assim, ele se recusa a abandoná-los. Incapazes de suportar a
diferença, os outros falcões o matam a bicadas.
O
conto, da antiga Taurídia, aparece em Khadji-Murát, novela
de Liev Tolstói (Cosac Naify, tradução e prefácio de Boris
Schnaiderman) já traduzida no Brasil, no passado, como O diabo
branco. Ele sintetiza, de forma poética, o conflito que move o
relato. Tolstói começou a escrever sua novela em 1895 e ao morrer,
em 1910, ela ainda estava inacabada. Os originais, que levava consigo
na hora da morte, chegaram a 2.166 páginas, enquanto a atual edição
brasileira tem 222.
Essa
novela sem fim – cuja grandeza se equipara à célebre A morte
de Ivan Ilitch – retém, de alguma forma, a vida do próprio
Tolstói. Quando, em 1878, ele completou 50 anos, era um artista
consagrado, autor de Guerra e Paz e de Anna Karenina.
Tinha dinheiro, glória, era famoso em todo o mundo, mas não tinha
mais desejos. Vivia por viver, sem nada desejar, o que equivalia à
morte. Era um mito. Estava fora de si.
Muitos
consideram Tolstói um escritor cristão, já que a crise de
meia-idade o levou à conversão ao cristianismo. Mas a palavra será
mesmo essa, conversão? Ou não terá sido, em vez disso, uma queda?
Apegou-se à figura de Jesus, mas rompeu com a Igreja Ortodoxa Russa
e foi excomungado. Estudou os Evangelhos para se convencer de que as
religiões desmentem as palavras divinas. Não via Jesus como Deus,
mas como um simples homem.
Tornou-se
vegetariano, por julgar que os matadouros equivaliam aos campos de
guerra. Considerou que o direito à propriedade era maligno e
distribuiu suas terras entre os servos. Passou a fabricar as próprias
roupas, por julgar odiosa a exploração do trabalho alheio.
Centrou-se em si, concluindo que a fé é, em essência, fé na vida.
E a vida se concentra dentro de cada um de nós, com toda a
incoerência e espanto que isso inclui.
Aos
82 anos, Tolst ói abandonou a família para se dedicar a seu caminho
solitário. “O máximo de realização literária parecia pedir a
superação da literatura”, comenta Schnaiderman. Viajou em trens
de terceira classe e faleceu, de pneumonia, durante uma baldeação
em Astapovo. Sozinho. Mas nunca esteve tão perto de si mesmo.
Também
o guerreiro Khadji-Murát precisa da traição para chegar a si. Um
paralelo com a figura de Tolstói me leva à pergunta: trair a si ou
trair à imagem que, como uma rede de guizos, nos cobre? Como
escritor, Tolstói traiu, muitas vezes, os ideais de seu tempo.
Gustave Flaubert reclamou que ele filosofava em vez de escrever. Em
seu leito de morte, Ivan Turguêniev lhe pediu, balbuciando, que se
esquecesse das ideias e voltasse à literatura. Mas como separar os
pensamentos das palavras?
Também
Khadji-Murát decepciona os amigos e trai sua causa para não trair a
si. Não é fácil cair em si mesmo. Lendário guerreiro tchetcheno,
o anti-herói de Tolstói abandona seus compatriotas e o chefe
caucasiano Chamil, que lutou contra os russos durante 25 anos, para
se engajar nas fileiras dos inimigos russos. Entrara em conflito com
o chefe, que agora o caçava “vivo ou morto”. Para sobreviver, só
lhe restou mudar de lado.
O
príncipe Vorontzóv lhe dá abrigo e ele anuncia que deseja se
entregar ao tsar Nicolau I. Os russos se alegram, o inimigo poderoso
agora está com eles. Guerreiro valente, Khadji-Murát quer agora
enfrentar o soberano Chamil. Teme, porém, que os russos,
desconfiados, o façam prisioneiro na Sibéria. A partir do momento
em que cai em si, já não confia em ninguém. Repete a figura do
falcão: os guizos de prata o afastam de todos.
Recusa
o alimento que lhe dão, pois teme ser envenenado. Sabe que sua dupla
condição, de herói mas também de desertor, o condena. Os russos o
mantêm sob vigilância. Só tem uma preocupação: sua família
ficou prisioneira de Chamil e, antes de enfrentá-lo, quer que os
soldados russos a libertem.
Não
é homem de falsear com as palavras: quando os russos o interrogam a
respeito de Chamil, não lhe poupa elogios. “Bandeou-se, mas o
elogia”, resmunga um deles. “Então, tu o consideras um santo?”,
outro quer saber. Khadji-Murát não recua: “Se não fosse santo, o
povo não o escutaria”. A “queda em si” abre as feridas da
ambiguidade. Não somos pedras nem temos a alma inteiriça. Todo
homem tem seus conflitos e, desejando ser sincero, o guerreiro expõe
os seus. Mas os russos buscam um mito, e não um homem. A
desconfiança aumenta.
Já
não sabem o que fazer com Khadji-Murát, um homem que parece ter
duas almas. Em sua fé cega na Grande Rússia, desconfiam dos que
expõem seu coração partido. A família do guerreiro tchetcheno
continua sob a guarda de Chamil. Iussuf, seu filho preferido, está
preso em uma fossa na companhia de sete criminosos. O imame Chamil, a
essa altura, já decretou a sentença de morte de Khadji-Murát.
Ordenou que o cacem e que não o poupem.
Como
os russos paralisam na dúvida, Murát resolve agir por si mesmo.
Decide fugir para libertar a família. Essa segunda traição o
transforma, aos olhos dos russos, em um homem sem alma. Sabe, porém,
que tudo que o move é a fidelidade a si. Os soldados do czar o
seguem. Khadji-Murát é cercado e ferido. Cai em meio ao campo, como
uma flor esmagada por uma carroça. A mesma delicada flor que levou o
narrador de Tolstói a relatar sua história.
A
“queda em si”, que leva o herói tchetcheno à derrota, é a
mesma que leva Tolstói, depois, a agonizar em um banco de estação.
Não se trata de defendê-los ou de atacá-los – de tomar partido.
A literatura não se interessa por essas simplificações, que só
esmigalham a verdade. Fico com as palavras do narrador de Tolstói
diante da delicada bardana que, mesmo torta, ainda sobrevive: “Que
energia! O homem venceu tudo, destruiu milhões de ervas, mas esta
não se rende”.
José
Castello, in Sábados inquietos
Nenhum comentário:
Postar um comentário