sábado, 3 de novembro de 2018

A arte de cair em si

Aprisionado por caçadores, um falcão vive, durante longos anos, entre os homens. Consegue, enfim, fugir e retorna às montanhas. Leva no corpo, porém, uma rede de guizos, usada pelos caçadores para vigiá-lo. Ao vê-lo com a estranha capa de prata, os falcões o rejeitam. “Entre nós, não existem redes nem guizos”, dizem. Mesmo assim, ele se recusa a abandoná-los. Incapazes de suportar a diferença, os outros falcões o matam a bicadas.
O conto, da antiga Taurídia, aparece em Khadji-Murát, novela de Liev Tolstói (Cosac Naify, tradução e prefácio de Boris Schnaiderman) já traduzida no Brasil, no passado, como O diabo branco. Ele sintetiza, de forma poética, o conflito que move o relato. Tolstói começou a escrever sua novela em 1895 e ao morrer, em 1910, ela ainda estava inacabada. Os originais, que levava consigo na hora da morte, chegaram a 2.166 páginas, enquanto a atual edição brasileira tem 222.
Essa novela sem fim – cuja grandeza se equipara à célebre A morte de Ivan Ilitch – retém, de alguma forma, a vida do próprio Tolstói. Quando, em 1878, ele completou 50 anos, era um artista consagrado, autor de Guerra e Paz e de Anna Karenina. Tinha dinheiro, glória, era famoso em todo o mundo, mas não tinha mais desejos. Vivia por viver, sem nada desejar, o que equivalia à morte. Era um mito. Estava fora de si.
Muitos consideram Tolstói um escritor cristão, já que a crise de meia-idade o levou à conversão ao cristianismo. Mas a palavra será mesmo essa, conversão? Ou não terá sido, em vez disso, uma queda? Apegou-se à figura de Jesus, mas rompeu com a Igreja Ortodoxa Russa e foi excomungado. Estudou os Evangelhos para se convencer de que as religiões desmentem as palavras divinas. Não via Jesus como Deus, mas como um simples homem.
Tornou-se vegetariano, por julgar que os matadouros equivaliam aos campos de guerra. Considerou que o direito à propriedade era maligno e distribuiu suas terras entre os servos. Passou a fabricar as próprias roupas, por julgar odiosa a exploração do trabalho alheio. Centrou-se em si, concluindo que a fé é, em essência, fé na vida. E a vida se concentra dentro de cada um de nós, com toda a incoerência e espanto que isso inclui.
Aos 82 anos, Tolst ói abandonou a família para se dedicar a seu caminho solitário. “O máximo de realização literária parecia pedir a superação da literatura”, comenta Schnaiderman. Viajou em trens de terceira classe e faleceu, de pneumonia, durante uma baldeação em Astapovo. Sozinho. Mas nunca esteve tão perto de si mesmo.
Também o guerreiro Khadji-Murát precisa da traição para chegar a si. Um paralelo com a figura de Tolstói me leva à pergunta: trair a si ou trair à imagem que, como uma rede de guizos, nos cobre? Como escritor, Tolstói traiu, muitas vezes, os ideais de seu tempo. Gustave Flaubert reclamou que ele filosofava em vez de escrever. Em seu leito de morte, Ivan Turguêniev lhe pediu, balbuciando, que se esquecesse das ideias e voltasse à literatura. Mas como separar os pensamentos das palavras?
Também Khadji-Murát decepciona os amigos e trai sua causa para não trair a si. Não é fácil cair em si mesmo. Lendário guerreiro tchetcheno, o anti-herói de Tolstói abandona seus compatriotas e o chefe caucasiano Chamil, que lutou contra os russos durante 25 anos, para se engajar nas fileiras dos inimigos russos. Entrara em conflito com o chefe, que agora o caçava “vivo ou morto”. Para sobreviver, só lhe restou mudar de lado.
O príncipe Vorontzóv lhe dá abrigo e ele anuncia que deseja se entregar ao tsar Nicolau I. Os russos se alegram, o inimigo poderoso agora está com eles. Guerreiro valente, Khadji-Murát quer agora enfrentar o soberano Chamil. Teme, porém, que os russos, desconfiados, o façam prisioneiro na Sibéria. A partir do momento em que cai em si, já não confia em ninguém. Repete a figura do falcão: os guizos de prata o afastam de todos.
Recusa o alimento que lhe dão, pois teme ser envenenado. Sabe que sua dupla condição, de herói mas também de desertor, o condena. Os russos o mantêm sob vigilância. Só tem uma preocupação: sua família ficou prisioneira de Chamil e, antes de enfrentá-lo, quer que os soldados russos a libertem.
Não é homem de falsear com as palavras: quando os russos o interrogam a respeito de Chamil, não lhe poupa elogios. “Bandeou-se, mas o elogia”, resmunga um deles. “Então, tu o consideras um santo?”, outro quer saber. Khadji-Murát não recua: “Se não fosse santo, o povo não o escutaria”. A “queda em si” abre as feridas da ambiguidade. Não somos pedras nem temos a alma inteiriça. Todo homem tem seus conflitos e, desejando ser sincero, o guerreiro expõe os seus. Mas os russos buscam um mito, e não um homem. A desconfiança aumenta.
Já não sabem o que fazer com Khadji-Murát, um homem que parece ter duas almas. Em sua fé cega na Grande Rússia, desconfiam dos que expõem seu coração partido. A família do guerreiro tchetcheno continua sob a guarda de Chamil. Iussuf, seu filho preferido, está preso em uma fossa na companhia de sete criminosos. O imame Chamil, a essa altura, já decretou a sentença de morte de Khadji-Murát. Ordenou que o cacem e que não o poupem.
Como os russos paralisam na dúvida, Murát resolve agir por si mesmo. Decide fugir para libertar a família. Essa segunda traição o transforma, aos olhos dos russos, em um homem sem alma. Sabe, porém, que tudo que o move é a fidelidade a si. Os soldados do czar o seguem. Khadji-Murát é cercado e ferido. Cai em meio ao campo, como uma flor esmagada por uma carroça. A mesma delicada flor que levou o narrador de Tolstói a relatar sua história.
A “queda em si”, que leva o herói tchetcheno à derrota, é a mesma que leva Tolstói, depois, a agonizar em um banco de estação. Não se trata de defendê-los ou de atacá-los – de tomar partido. A literatura não se interessa por essas simplificações, que só esmigalham a verdade. Fico com as palavras do narrador de Tolstói diante da delicada bardana que, mesmo torta, ainda sobrevive: “Que energia! O homem venceu tudo, destruiu milhões de ervas, mas esta não se rende”.
José Castello, in Sábados inquietos

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