quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Contradições e inconsequências

A preocupação com o sistema e com a unidade não foi e nem jamais será o lote daqueles que escrevem nos momentos de inspiração, quando o pensamento se torna uma expressão orgânica obediente aos caprichos dos nervos. A unidade perfeita e a busca por um sistema coerente indicam uma vida pessoal pobre em recursos, uma vida esquemática e rasa da qual estão ausentes a contradição, a gratuidade e o paradoxo. Somente as contradições essenciais e as antinomias interiores são testemunhas de uma vida espiritual fecunda, pois somente elas fornecem ao fluxo e à abundância internas uma possibilidade de realização. Aqueles que têm poucos estados de alma e ignoram a experiência dos confins não podem se contradizer, uma vez que suas tendências reduzidas não saberiam opôr-se. Aqueles que, ao contrário, sentem intensamente o ódio, o desespero, o caos, o nada ou o amor, que cada experiência consome e precipita em direção à morte; aqueles que não podem respirar abaixo dos cumes e que estão sempre sós, ainda mais quando estão cercados de gente - como poderiam seguir uma evolução linear ou cristalizar-se em sistema? Tudo aquilo que é forma, sistema, categoria, plano ou esquema procede de um déficit dos conteúdos, de uma carência de energia interior, de uma esterilidade da vida espiritual. As grandes tensões desta vida conduzem ao caos, a uma exaltação vizinha da demência. Não há vida espiritual fecunda que não conheça os estados caóticos e efervescentes da doença em seu paroxismo, quando a inspiração aparece como uma condição essencial da criação e as contradições como manifestações da temperatura interior. Quem quer que desaprove os estados caóticos não é um criador - quem quer que menospreze os estados doentios não é qualificado para falar do espírito. Somente tem valor aquilo que surge da inspiração, do fundo irracional de nosso ser, aquilo que brota do ponto central da nossa subjetividade. Todo produto exclusivo do esforço e do trabalho é desprovido de valor, assim como todo produto exclusivo da inteligência é estéril e desinteressante. Em contraste, enfeitiça-me o espetáculo da projeção bárbara e espontânea da inspiração, a efervescência dos estados de alma, do lirismo essencial e de tudo aquilo que é tensão interior - todas as coisas que fazem da inspiração a única realidade viva na ordem da criação.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Nenhum comentário:

Postar um comentário