terça-feira, 13 de novembro de 2018

Como Bertrand Russell foi impedido de lecionar na Faculdade Municipal de Nova York

IV
Entre os berros e as ameaças dos zelotes, alguns integrantes do Conselho vacilaram. Mesmo assim, na reunião do dia 18 de março, a maioria permaneceu fiel às suas convicções, e a polêmica nomeação foi confirmada por 11 votos contra 7. A oposição esperava essa a derrota e estava pronta para atacar em todas as frentes. Havendo fracassado em obter a anulação da nomeação de Russell para a Faculdade Municipal, tentaram impedir que ele lecionasse em Harvard. Russell havia sido convidado para dar as aulas William James lá no semestre de outono [o primeiro semestre do ano letivo, com início em setembro] de 1940. No dia 24 de março, Thomas Dorgan, “agente legislativo” da cidade de Boston, escreveu ao reitor James B. Conant: “O senhor sabe que Russell defende o casamento igualitário e o relaxamento das obrigações que restringem a conduta moral. Contratar esse homem, convém observar, é um insulto a todos os cidadãos americanos do Estado do Massachusetts”.
Ao mesmo tempo, a Assembleia Legislativa do Estado de Nova York recebeu o pedido para que fizesse com que o Conselho de Educação Superior rescindisse a nomeação de Russell. O senador Phelps, democrata de Manhattan, apresentou uma resolução que colocaria a Assembleia como assumindo publicamente a posição de que “um defensor da moralidade baixa é pessoa inadequada para ocupar posto importante no sistema educacional de nosso Estado, à custa dos contribuintes”. Essa resolução foi adotada, e até onde sei, nenhuma voz se ergueu em oposição a ela.
Tal resolução foi o prelúdio de uma ação mais drástica. Onze integrantes do Conselho de Educação Superior haviam se mostrado tão teimosos a ponto de desafiar as ordens da hierarquia. Os hereges precisavam ser punidos. Era preciso mostrar a eles quem detinha o verdadeiro poder no Estado de Nova York. Baseando sua opinião nas afirmações do bispo Manning e do reitor Gannon, da Universidade Fordham, o senador John F. Dunigan, líder da minoria, declarou ao Senado que a filosofia de Russell “debocha da religião, do Estado e das relações familiares”. Reclamou das “teorias ímpias e materialistas daqueles que hoje governam o sistema escolar da cidade de Nova York”. A atitude do Conselho, que “insistiu na nomeação de Russell apesar da grande oposição pública”, o argumentou senador, “é uma questão de preocupação para esta Legislatura”. Ele exigiu uma investigação completa do sistema educacional da cidade de Nova York e deixou claro que tal investigação teria como alvo principal as instalações universitárias controladas pelo Conselho de Educação Superior. A resolução do senador Dunigan também foi adotada, com apenas uma pequena modificação.
Mas esses foram apenas conflitos menores. A manobra principal foi conduzida na própria cidade de Nova York. Uma tal sra. Jean Kay, do Brooklyn, que não tivera nenhum destaque anterior por seu interesse nas questões públicas, preencheu um formulário de queixa de contribuinte na Suprema Corte de Nova York para invalidar a nomeação de Russell, sob a alegação de ele ser estrangeiro e defensor da imoralidade sexual. Ela se declarou pessoalmente preocupada com o que poderia acontecer à sua filha Gloria, caso se formasse aluna de Bertrand Russell. O fato de que Gloria Kay poderia não ser aluna de Russell na Faculdade Municipal aparentemente não foi considerado relevante. Posteriormente, os advogados da sra. Kay apresentaram outras duas razões para barrar Bertrand Russell. Por um lado, ele não fora testado quanto à sua competência e, por outro, “era contrário à política pública indicar como professor qualquer pessoa que acreditasse no ateísmo”.
A sra. Kay foi representada por um advogado chamado Joseph Goldstein, que, sob a administração Tammany anterior a LaGuardia, fora magistrado municipal. Em sua ação, Goldstein descreveu as obras de Russell como “devassas, libidinosas, lascivas, venéreas, erotomaníacas, afrodisíacas, irreverentes, limitadas, mentirosas e desprovidas de fibra moral”. Mas isso não foi tudo. De acordo com Goldstein, “Russell dirigia uma colônia de nudismo na Inglaterra. Seus filhos desfilavam nus. Ele e sua esposa desfilavam nus em público. Esse homem, que tem hoje cerca de setenta anos, é adepto da poesia devassa. Russell assente à homossexualidade. Eu iria ainda mais longe e diria que ele a aprova.” Mas nem isso foi tudo. Goldstein, que presumivelmente passa seu tempo livre estudando filosofia, concluiu sua acusação com um veredicto a respeito da qualidade do trabalho de Russell. Esse veredicto danoso diz o seguinte:

Ele não é filósofo na verdadeira acepção da palavra; não é alguém que ame a sabedoria; nem alguém que busque a sabedoria; não é um explorador dessa ciência universal, que tem como objetivo a explicação de todos os fenômenos do universo por meio de suas causas supremas. Na opinião de seu depoente e de uma multidão de outras pessoas, é um sofista; pratica o sofismo; ao dissimular artifícios, engana e trama e por meio de evasivas, apresenta argumentos falaciosos e argumentos que não são embasados pelo raciocínio sólido; tira conclusões que não são deduzidas de premissas sólidas; e todas as suas supostas doutrinas, que ela chama de filosofia, não passam de fetiches e proposições baratas, de mau gosto, desgastadas e remendadas, arquitetadas com a intenção de desviar as pessoas.

De acordo com o jornal Daily News, nem a sra. Kay, nem seu marido, nem Goldstein diziam quem estava pagando as custas do processo.
Russell, até esse ponto, abstivera-se de tecer qualquer comentário, a não ser uma breve declaração, logo no início da campanha, em que dissera: “Não tenho desejo de responder ao ataque do bispo Manning (...). Qualquer pessoa que na juventude decida tanto falar quanto pensar com honestidade, independentemente da hostilidade e das interpretações errôneas, espera tais ataques e logo aprende que o melhor é ignorá-los”. No entanto, agora que o ataque fora levado a um tribunal de Justiça, Russell sentiu-se na obrigação de publicar uma resposta. “Até agora, mantive um silêncio quase ininterrupto a respeito da controvérsia relativa à minha indicação à Faculdade Municipal”, ele observou, “porque não pude admitir que minhas opiniões fossem relevantes. Mas, quando afirmações grosseiramente mentirosas a respeito de minhas ações são feitas em juízo, sinto que devo apresentar a minha versão. Nunca conduzi uma colônia de nudismo na Inglaterra. Nem minha esposa nem eu jamais desfilamos nus em público. Nunca fui adepto de poesias devassas. Tais afirmações são falsidades deliberadas, e aqueles que as proferem devem saber que elas não têm fundamento nos fatos. Ficarei feliz se tiver a oportunidade de negá-las sob juramento.” Deve-se ainda ajuntar que Russell jamais “aprovou” o homossexualismo. Mas esse é um ponto que discutirei em detalhes mais à frente.
A acusação da sra. Kay foi ouvida pelo juiz McGeehan, que antes estivera associado à máquina do Partido Democrático do Bronx. McGeehan já tinha, antes desse caso, destacado-se ao tentar fazer com que um retrato de Martinho Lutero fosse removido de um mural que ilustrava a história do Direito em um fórum. Nicholas Bucci, advogado interno assistente, representou o Conselho de Educação Superior. Com muita propriedade, recusou-se a ser arrastado para uma discussão a respeito das opiniões malignas de Russell e de sua incompetência como filósofo. Ateve-se ao único ponto legalmente relevante do processo – que um estrangeiro não podia ser nomeado para um posto em faculdade municipal. Bucci negou que esse fosse o caso e, assim, pediu que o processo fosse arquivado. McGeehan respondeu, ameaçador: “Se eu descobrir que esses livros dão sustentação às alegações da petição, darei algo sobre o que refletir à Divisão de Recursos e ao Tribunal de Apelação”. Os livros aqui referidos foram os indicados por Goldstein para apoiar suas acusações. Eram Education and the Good Life [A Educação e a Boa Vida], Marriage and Morals [Casamento e Moral], Education and the Modern World [Educação e o Mundo Moderno] e What I Believe [No que eu Acredito].
Paul Edwards, in Apêndice de Porque não sou cristão, de Bertrand Russell

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