O
que acontece? Quando ainda estão no carro, voltando de um jantar com
amigos, já aparecem os comentários:
“Bebi
muito.”
“Deu
um sono.”
“Amanhã
tenho um dia tão difícil…”
E
nem deu meia-noite. É o código. Hoje não rola. Como ontem, como
antes…
Cruzam
a garagem rapidamente, atacados pela corrente de vento gelado. Nem
encaram o porteiro.
No
elevador, cada um num canto. Ele quem aperta o botão do andar.
Sempre é ele quem aperta, ela reparou. Ele quem comanda. Gosta de.
Ele quem dirige, atende o interfone, pega o jornal às manhãs,
decide as férias, se está frio, se devem trocar de carro, de
aparelhos de TV, DVD, partir pra jornada sem volta da troca do PC
pelo Mac.
Não
estão nada bêbados. Poucas taças. Entram em casa e se separam.
Cada um tem o seu ritual de dispersão, encerrar o dia, organizar,
recolocar. Ela checa os e-mails e a ração para os gatos. Ele lista
os afazeres da empregada, fica pouco tempo no banheiro, se joga na
cama e liga a TV.
Ela
ainda toma um banho. Gasta alguns minutos se lambuzando com cremes.
Checa cutículas indesejáveis, passeia os olhos pelo espelho de
corpo inteiro: a frente e as costas, os cotovelos e as pernas. Seca o
cabelo com um secador barulhento — o síndico irá reclamar um dia.
Ela
entra no quarto. Ele dorme com o controle remoto na mão. Ela desliga
apertando o botão no painel da TV, desliga o abajur, vai para o seu
lado da cama e se deita no escuro. Coloca um travesseiro entre as
pernas. Escuta um caminhão ao longe. Amanhã tem feira.
A
criança do vizinho chora, e um alarme dispara.
Um
está de costas para o outro.
Dorme?
Não,
porque ele ainda diz: “Boa-noite.” Ela responde com um grunhido
simpático, fica ainda um bom tempo de olhos abertos.
E
se pergunta: o que acontece?
Acontece
que, estranhamente, ela precisa de colo. Que ela não sente mais
aquele frisson quando cruza a garagem do prédio. Porque não
o provoca mais no elevador, ignorando a câmera, desabotoando a
camisa dele, esfregando o joelho nele, apalpando-o, assim que ele
aperta o botão. Acontece que eles não se beijam mais quando entram
em casa, não escutam uma música no escuro, ela não senta no colo
dele diante do computador, nem tomam banho juntos. Acontece que ela
não olha mais para o espelho para checar o que irá mostrar daqui a
pouco, nem planeja como entrar no quarto, para se oferecer enrolada
numa toalha, engatinhar pela cama, roçar o nariz na perna dele,
lamber do umbigo até a boca, deitar sobre ele como um cobertor,
morder o seu pescoço, sua nuca, seu ombro. Acontece que ela não
apagaria aquela TV, nem a luz, nem a noite. E ele nem diria
boa-noite, mas bem-vinda. E depois de tudo, sim, dormiriam
pesadamente; nenhum alarme, criança ou caminhão seriam notados.
Acontece
que ela acordaria, e ele estaria ainda na cama. Acontece que ele não
comenta mais a cor da sua calcinha, do seu esmalte, dos seus olhos.
Acontece que ele não a elogia mais, não surpreende, não desafia,
nem provoca, não confunde as palavras, nem engasga quando ela
aparece de toalha, não corre mais atrás dela, não a acorda com o
corpo sobre o dela, como uma manta, não a abraça como uma toalha,
não a abriga como água quente.
Acontece
que ele já saiu quando ela se levantou da cama de manhã.
Nenhum
post-it está fixado, com algum carinho escrito. Nem rascunho
de bilhete existe. Ele não irá mandar um torpedo do trabalho, nem
um e-mail. Hoje em dia, quando viaja, não liga para dizer se houve
turbulência, se o hotel é legal, se está muito frio ou um sol de
rachar.
Acontece
que há tempos não repartem um cigarro, não se perdem por uma
estrada de terra, não discutem se o que veem é um disco voador ou
um satélite espião russo.
Acontece
que ele não a espia mais pelo buraco da fechadura, não tira fotos
dela se enxugando diante do espelho, não dá sustos quando ela tem
soluços, não beija os seus pés, não conta as suas pintinhas, não
canta em voz alta pela casa, não a acorda lambendo sua orelha.
Acontece
que há muito não saem os dois sozinhos e entram num filme sem saber
o que a crítica achou. Sem lerem os créditos, sentados na última
fileira, se tocando, se beijando. Acontece que eles não repartem
mais a pipoca, o refrigerante zero, o dropes. Acontece que o
diferente virou eventual, a rotina, habitual. Que todo desconhecido
já se revelou, que a surpresa é predita, que o consumado é fato, o
previsível, farto, e o pressuposto, preposto.
O
que acontece é que ela sente falta de ser notada e elogiada dentro
de casa. De ter calafrios. De sentir a pele esquentar. Acontece que
ultimamente ela se veste para ninguém. Que ela nem liga mais o rádio
do carro. Que não a comove o xaveco no elevador do escritório. Que
só troca e-mails de trabalho. Que ela almoça massa, se entope de
pão e ainda se delicia com sorvete com caldas. E agora costuma pedir
chantilly no café.
O
que acontece com ela, que nem tinge mais o cabelo, falta à natação,
não corre com as amigas, não compra sapatos, não troca a lente
riscada dos óculos, não recebe mensagens românticas pelo celular?
Acontece
que o incêndio se acomodou. Ela não se pergunta se é assim que tem
que ser.
Acontece.
É
cíclico, ouviu dizer.
Pode
ser que melhore.
Por
que perder o fôlego toda vez que o encontra? Já passou.
Viva
outra fase.
Não
se fabricam mais dropes.
Reprima
essa vaidade.
Não
seja carente.
Encare
os fatos.
A
vida é assim.
E
a saudade é o pior tormento, é pior que o esquecimento.
É?
Marcelo
Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz
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