quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Eu e o mundo

O fato de que eu existo prova que o mundo não tem sentido. Que sentido eu poderia encontrar, com efeito, nos suplícios de um homem infinitamente atormentado e infeliz, para quem tudo se reduz em última instância ao nada e o sofrimento faz a lei deste mundo? O fato de que o mundo tenha permitido a existência de um humano tal como eu mostra que as manchas sobre o sol da vida são tão vastas que elas acabarão por esconder a luz. A bestialidade da vida pisoteou-me e esmagou - ela cortou-me as asas em pleno voo e recusou-me quaisquer alegrias às quais eu pudesse ter pretendido. Meu zelo desmesurado, a energia louca que eu gastei para brilhar aqui embaixo, a dominação demoníaca a qual me submeti para vestir uma auréola futura e todas as minhas forças desperdiçadas em vista de um revestimento vital ou de uma aurora interior - tudo isto revelou-se mais fraco que a irracionalidade deste mundo, que versou em mim todas as suas fontes de negatividade envenenada. A vida não resiste à alta temperatura. Assim sendo, entendi que os homens mais atormentados, cuja dinâmica interior atinge o paroxismo, e que não podem acomodar-se à tepidez habitual, são destinados a fundir-se. Encontramos, na angústia dos que habitam regiões insólitas, o aspecto demoníaco da vida, mas também sua insignificância, o que explica que ela seja privilégio dos medíocres. Somente estes últimos vivem a uma temperatura normal; os outros, um fogo devorante os consome. Eu nada posso trazer ao mundo, porque minha caminhada é única: a da agonia. Vocês se queixam de que os homens sejam malvados, vingativos, ingratos ou hipócritas? Eu proponho-lhes, quanto a mim, o método da agonia, que lhes permitirá de escapar temporariamente a todas estas falhas. Apliquem-na a cada geração - os efeitos manifestar-se-ão em pouco tempo. Assim sendo, renderei-me, talvez, também útil à humanidade.
Através do chicote, do fogo ou do veneno, façam então com que cada agonizante prove a experiência dos últimos momentos, a fim de que ele conheça, num atroz suplício, a grande purificação que é a visão da morte. Deixem-no, então, partir, correr aterrorizado até que ele caia de fraqueza. O resultado será, não o duvidem, mais brilhante do que aquele que obteríamos pelas vias habituais. Pudesse eu levar o mundo inteiro a agonia para purgar a vida em suas próprias raízes! Eu aí colocaria chamas tenazes, não para destruí-la, mas para comunicá-la uma seiva e um calor diferentes. O fogo que eu colocaria no mundo em nada traria sua ruína, mas sim uma transfiguração cósmica, essencial. Também a vida acostumar-se-ia a uma alta temperatura e cessaria de ser um ninho de mediocridade. Quem sabe a própria morte não cessaria, no seio deste sonho, de ser imanente à vida?
(Escrito neste dia de 8 de abril de 1933, meu vigésimo segundo aniversário. Experimento uma estranha sensação ao pensar que sou, à minha idade, um especialista do problema da morte.)
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Nenhum comentário:

Postar um comentário