quarta-feira, 17 de outubro de 2018

As outras violências

Neste encontro iremos falar da Não-Violência no contexto do progresso social. Eu acho extremamente interessante que se abordem estes temas em Moçambique, sobretudo se o fizermos de maneira inovadora e com abertura para encontrar soluções. Existe nos nossos países — eu falo do nosso continente — uma tendência para substituir o pensamento crítico pela facilidade de apontar culpas e crucificar culpados. O mundo surge como uma coisa simplificada em que os culpados são os outros e as vítimas somos sempre nós. Esta facilidade é muito tentadora, mas é uma mentira.
A atitude de nos fabricarmos a nós mesmos como simples vítimas é uma das principais razões para os problemas de África e dos africanos. Todo o nosso discurso continua centrado na culpabilização do passado colonial e da dominação estrangeira. A culpa é sempre o Outro. Esse outro pode ser uma outra raça, uma outra etnia, uma outra religião. Nós estamos sempre isentos de procurar dentro de nós as causas profundas dos nossos problemas.
Li há poucos dias que o governo do Zimbábue, cansado de acusar o Ocidente pelo caos que vive, passou a acusar os países vizinhos, incluindo Moçambique. Nós, Moçambique e os restantes vizinhos da África Austral, fomos acusados de aliciar os professores Zimbábuenses a saírem do Zimbábue. Existe, de facto, uma fuga dramática de professores daquele país e, apenas no ano passado, 25 mil professores qualificados fugiram do país. A verdade é que não são apenas professores que procuram o exílio. Há uma debandada geral do Zimbábue. Numa nação de 12 milhões de habitantes, 3 milhões já saíram para escapar do desespero causado por políticos irresponsáveis. A crise interna é tão grave que o Zimbábue passou de nação próspera para um país em ruínas com mais de 80% de desemprego e o recorde mundial da inflação. No entanto, para o governo zimbabuense a razão do exílio dos professores não está dentro do país, está no complô externo.
Este parece um caso caricato, mas todos nós praticamos, mesmo que seja inconscientemente, este procedimento de invenção de culpados e absolvição de responsabilidades.
Falaremos neste encontro de Não-Violência que é um modo de dizer que falaremos da violência. Ora eu considero que é urgente e imperioso discutir a violência em Moçambique, sobretudo por duas razões:
A primeira razão por que a violência maior actua de modo silencioso, e das poucas vezes que falamos dela falamos apenas da ponta do icebergue. Nós acreditamos que estamos perante fenômenos de violência apenas quando essa tensão assume proporções visíveis, quando ela surge como espetáculo mediático. Mas esquecemos que existem formas de violência oculta que são gravíssimas. Esquecemos, por exemplo, que todos os dias, no nosso país, são sexualmente violentadas crianças. E que, na maior parte das vezes, os agressores não são estranhos. Quem viola essas crianças são principalmente parentes. Quem pratica esse crime é gente da própria casa.
Nós temos níveis altíssimos de violência doméstica, e, em particular, de violência contra a mulher. Mas esse assunto parece ser preocupação de poucos. Fala-se disso em algumas ONG s, em alguns seminários. A Lei contra a violência doméstica ainda não foi aprovada na Assembleia da República.
Existem várias outras formas invisíveis de violência. Existe violência quando os camponeses são expulsos sumariamente das suas terras por gente poderosa e não possuem meios para defender os seus direitos. Existe uma violência contida quando, perante o agente corrupto da autoridade, não nos surge outra saída senão o suborno. Existe, enfim, a violência terrível que é o vivermos com medo. E existe essa outra violência maior que é considerarmos a violência como um facto normal. Existe, em suma, essa terrível aprendizagem de negarmos em nós mesmos tudo que nos ensinaram como valor humano: o ser solidário com os outros, os que sofrem.
Recordo-me de que certa noite circulava por uma estrada da costa de Inhambane. Estava sozinho na viatura e não se via vivalma nas redondezas. De súbito, deparo com um corpo atravessado na estrada. Todas as normas de segurança sugeriam que eu não parasse. Podia realmente ser uma emboscada. Mas podia simplesmente ser um homem ferido que carecia de ajuda. Algo me impelia a abrir a porta e a aproximar-me do indivíduo que não parecia dar acordo de si. Uma voz dentro de mim segredava-me: passa ao lado e segue o teu caminho. Esse momento de indecisão dentro de mim foi das mais graves violências praticadas por mim contra mim próprio. “O que o medo fez de nós”, pensei enquanto ajudava o pobre homem que estava simplesmente embriagado.
O que eu quero dizer é que persistem, na nossa casa colectiva, formas silenciosas e ocultas de violência que não podem ser esquecidas num debate como este. Esquecer os deveres básicos de solidariedade é uma violência, uma cobardia escondida em nome do bom-senso.
A segunda razão por que é importante falar de violência em Moçambique resulta do facto de persistir o mito de que nós, moçambicanos, somos um povo não violento, um povo ordeiro. Esta mistificação é tão enraizada que muitos acreditam profunda e genuinamente nela. Pode ter havido dezesseis anos de guerra civil, de uma guerra cruel, violentíssima, pode ter havido tudo isso muito recentemente, mas mesmo assim ninguém retira do discurso que construímos sobre nós mesmos que os moçambicanos são um povo não violento.
Podem ocorrer linchamentos e o povo queimar e apedrejar até à morte indiciados de crimes, mas isso não afeta nada. Nós somos e seremos para sempre um “povo pacífico”. Esquecemos que todos os povos do mundo são pacíficos, à partida. Os povos não são um produto genético, imutável. São produto da História. E a História pode facilmente converter os desejos de Paz em violência pessoal e social. Os moçambicanos não são especialmente ordeiros. Também não são especialmente desordeiros. São como todos os povos do Mundo: respondem com violência quando se sentem violentados.
Porque temos ideias preconceituosas sobre nós mesmos, ficamos surpreendidos e não sabemos como reagir perante as repentinas irrupções de violência. E ficamos satisfeitos, uma vez mais, em encontrar culpados. Para alguns, a emergência desses fenômenos violentos resulta apenas da mão escondida de conspiradores. Aqui está, uma outra vez, a teoria dos culpados. Essa teoria do complô pode, muitas vezes, ser verdadeira. Mas nem sempre os culpados são os outros.
Na realidade, um outro tópico que estamos debatendo neste encontro é chamado “progresso social”. Esse assunto dava para muita discussão. Não temos tempo aqui. Mas gostaria de abordar o progresso social na perspectiva do tema central da violência. O que eu quero dizer é que, muitas vezes, o chamado progresso pode ser uma violência. Pode agir como uma agressão silenciosa contra sociedades inteiras e, sobretudo, contra os mais pobres dessas sociedades.
O escritor Bertolt Brecht dizia: “Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas ninguém diz que são violentas as margens que comprimem esse mesmo rio”. Nós falamos da reação violenta de cidadãos pobres contra um sistema que produz pobreza. É isto que deve ficar claro.
Linchamentos são uma resposta violenta contra uma violência maior que é o crime como sistema de vida e a incapacidade de resposta do Estado perante a crescente criminalidade. O linchamento popular é o rio que transborda. A criminalidade de todos os dias são as margens que comprimem esse rio.
As manifestações contra os aumentos nos “chapas” em Maputo traduzem um desespero: não é apenas um transporte urbano que falta aos jovens. Aos nossos jovens falta um outro tipo de transporte que os leve para o futuro, que os conduza para um sonho, que garanta uma ligação com uma vida de promessas cumpridas.
O verdadeiro desespero é ficar no apeadeiro da sua atual condição. O desespero é saber que esse destino a que chamamos de futuro é comandado por entidades que deixaram de olhar para nós como seres humanos. E que um fosso progressivamente maior separa os que andam nos chapas dos que circulam em luxuosas viaturas.
Achamos inaceitável que alguém destrua os bens sociais como quem rasga as páginas de um livro. Mas talvez isso suceda porque esse livro não pode nunca ser nosso. Estamos rasgando as páginas dessa mesma Vida que nos nega a nós como seres que anseiam ser felizes. A violência de rua que vivemos em Maputo e em Chimoio não é má apenas porque é violenta. Ela é negativa porque não produz respostas de organização e de construção de alternativas sociais. Mas ela é sobretudo um sinal revelador de doença. E nós temos de curar a doença e não apenas os sintomas.
Não se trata de uma responsabilidade do governo. Existirão, certamente, questões de governação que é preciso escalpelizar. Não se pode governar um país como se a política fosse um quintal e a economia fosse um bazar. Ao avaliar um regime de governação precisamos, no entanto, de ir mais fundo e saber se as questões não provêm do regime mas do sistema e a cultura que esse sistema vai gerando. Pode-se mudar o governo e tudo continuará igual se mantivermos intacto o sistema de fazer economia, o sistema que administra os recursos da nossa sociedade. Nós temos hoje gente com dinheiro. Isso em si mesmo não é mau. Mas esses endinheirados não são ricos. Ser rico é outra coisa. Ser rico é produzir emprego. Ser rico é produzir riqueza. Os nossos novos-ricos são quase sempre predadores, vivem da venda e revenda de recursos nacionais.
Afinal, culpar o governo ou o sistema e ficar apenas por aí é fácil. Alguém dizia que “governar é tão fácil que todos o sabem fazer até ao dia em que são governo”. A verdade é que muitos dos problemas que nós vivemos resultam da falta de resposta nossa como cidadãos ativos. Resulta de apenas reagirmos no limite quando não há outra resposta senão a violência cega. Grande parte dos problemas resulta de ficarmos calados quando podemos pensar e falar.
Martin Luther King dizia: “Mais grave que o ruído causado pelos homens maus é o silêncio cúmplice dos homens bons que aceitam a resignação do silêncio”. A vocês que recusam esse silêncio, quero agradecer por esta iniciativa.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

Nenhum comentário:

Postar um comentário