segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Encontros e encantos — Guimarães Rosa (trecho)

Aventurei-me sobre possíveis razões dessa ponte mágica entrecriada entre o autor mineiro [Guimarães Rosa] e os nossos autores africanos. Possivelmente, nada disto faz sentido. Essas razões valem para mim, com a minha história e a minha vivência.
O meu país tem países diversos dentro, profundamente divididos entre universos culturais e sociais variados. Eu mesmo sou a prova desse cruzar de mundos e de tempos. Sou moçambicano, filho de portugueses, vivi o sistema colonial, combati pela independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao capitalismo, da revolução à guerra civil. Nasci num tempo de charneira, entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que ainda está nascendo. Essa condição de um ser de fronteira marcou-me para sempre. As duas partes de mim exigiam um médium, um tradutor. A poesia veio em meu socorro para criar essa ponte entre dois mundos aparentemente distantes.
E eu cresci nesse ambiente de mestiçagem, escutando os velhos contadores de histórias. Eles me traziam o encantamento de um momento sagrado. Aquela era a minha missa. Eu queria saber quem eram os autores daquelas histórias e a resposta era sempre a mesma: ninguém. Quem criara aqueles contos haviam sido os antepassados, e as histórias ficavam como herança divina. Naquele mesmo chão estavam sepultados os mais velhos, conferindo história e religiosidade àquela relação. Nessa moradia, os antepassados se convertem em deuses.
Por aquela razão, aquele momento agia em mim de maneira contraditória: por um lado, me aconchegava, por outro me excluía. Eu não podia partilhar por inteiro daquela conversa entre deuses e homens. Porque eu estava já carregado de Europa, minha alma já bebera de um pensamento. E os meus mortos residiam num outro chão, longínquo e inacessível.
Quando me pergunto porque escrevo eu respondo: para me familiarizar com os deuses que eu não tenho. Os meus antepassados estão enterrados em outro lugar distante, algures no norte de Portugal. Eu não partilho da sua intimidade e, mais grave ainda, eles me desconhecem inteiramente. O que faço hoje, sempre que escrevo, é inventar esses meus antepassados. Essa reinvenção pede artifícios que só a infância pode guardar. Uma reaprendizagem tão profunda implica uma perda radical de juízo. Isto é, implica a poesia.
E foi poesia o que me deu o prosador João Guimarães Rosa. Quando o li pela primeira vez experimentei uma sensação que já tinha sentido quando escutava os contadores de histórias da infância. Perante o texto, eu não lia simplesmente: eu ouvia vozes da infância. Os livros de João Guimarães Rosa atiravam-me para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto seletivo. Para entrar naqueles textos eu devia fazer uso de um outro ato que não é “ler”, mas que pede um verbo que ainda não tem nome.
Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo. Aquela era uma linguagem em estado de transe, que entrava em transe como os médiuns das cerimônias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exatamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. Ele cria o momento religioso em que emigra do seu próprio corpo.
Os contadores de histórias do meu país têm de proceder a um ritual quando terminam a narração. Têm de “fechar” a história. “Fechar” a história é um ritual em que o narrador fala com a própria história. Pensa-se que as histórias são retiradas de uma caixa deixada por Guambe e Dzavane, o primeiro homem e a primeira mulher. No final, o narrador volta-se para a história — como se a história fosse uma personagem — e diz: — Volta para casa de Guambe e Dzavane.
É assim que a história volta a ser encerrada nesse baú primordial.
O que acontece quando não se “fecha” a história? A multidão que assiste fica doente, contaminada por uma enfermidade que se chama a doença de sonhar. João Guimarães Rosa é um contador que não fechou a história. Ficamos doentes, nós que o escutamos. E amamos essa doença, esse encantamento, essa aptidão para a fantasia. Porque a todos não nos basta ter um sonho. Queremos mais, queremos ser um sonho.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

Nenhum comentário:

Postar um comentário