sábado, 6 de outubro de 2018

Conhecer um poeta

As informações, na última página, são mínimas. O autor é professor de Estética e dá aulas na Universidade de Brasília. É seu segundo livro. E eis tudo. Contenho o impulso de pesquisar o nome de Gustavo de Castro na web. Decido ler seu livro Poemas vis (Casa das Musas, Brasília) sem nenhum apoio externo. A seco.
Vou direto aos versos. Na página 26, não com uma resposta, mas com uma pergunta, Gustavo me ajuda. “Três formas de abaixar?” E oferece, em seguida, três respostas. “A primeira forma é abaixar para cheirar a flor”, diz. Aproximar-se, se render, ceder espaço ao que é. Chegar a cada coisa, e ali ficar, quieto.
A proposta de Gustavo me remete aos versos de Alberto Caeiro, que nunca me canso de ler: “A Natureza é partes sem um todo,/ Isto é talvez o tal mistério de que falam”. O poeta se abaixa e cheira. Uma flor, e não outra. Isso, e não aquilo. Ali se detém, em silêncio. Nos dias de hoje, em que somos levados a querer tudo e não conseguimos parar, isso é bem difícil.
Propõe Gustavo uma segunda maneira de abaixar. “A segunda forma é abaixar a crista”, diz, sem meias palavras. Diante da coisa – uma flor, uma cidade, um poema –, se resignar, aceitar. Não desejar mais nem procurar mais. Conter-se. “Menos, meu amigo”, ele escreve.
Nesse ponto, me voltam os versos de Marianne Moore: “O sentimento mais profundo sempre se mostra em silêncio;/ não em silêncio, mas contenção”. Eu os reencontro em “Silêncio”, um dos Poemas reunidos, de 1951. Piadas do acaso: o ano em que nasci.
Última proposta de Gustavo: “A terceira forma é o exercício do abismo: de vez em quando observar os vendavais”. Coisas de que fugimos: ventanias, tempestades, desastres naturais. Não fugir, permanecer e observar.
Ainda não sei quem é Gustavo de Castro, mas começo a entender o que ele busca. Na página 37, em um pequeno poema, ele me dá mais um sinal. Escreve: “Oh Vera/ Nem toda maçã/ Apodrece/ Nem toda laranja/ É de sumo/ Nem todo limão/ Emagrece”. As garantias? Não temos, mas hoje quase todos se recusam a aceitar isso.
Escapam os poetas, que por isso são poetas. Segue Gustavo: “Nem sempre a verdade/ É a realidade/ Vera”. E ainda: “O real que se vê/ Não se crê/ Vera”.
Para que serve a poesia, senão para desarranjar nossas medíocres convicções? Os grandes cientistas sabem disso: você chega a um ponto, mas não deve se dar por satisfeito; logo outro abismo se abre e o antigo ponto de apoio, que parecia tão firme, se esfarela. E você despenca.
Mais um salto e volto a Alberto Caeiro, que me ajuda a ler Gustavo: “Procuro despir-me do que aprendi/ procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram”. Não, não é fácil. É humano que não se consiga. Mais humano ainda que não se queira. Mas a poesia nos incita a uma aproximação.
Poetas desconhecidos incomodam. Ficamos aflitos: – É bom? É ruim? O leitor espera que eu o ajude nessa decisão. Um leitor quer saber onde pisa, ou se angustia. Crescemos assim, nossos pais nos ensinaram a não falar com desconhecidos. Devemos imediatamente conhecer, ainda que isso mate o que desejamos conhecer.
Sugere Gustavo em outro poema: “Submerso nas cores, o destino do poeta é ser porta-voz da noite”. Ecos tardios do Romantismo. Na Brasília do século XXI? E por que não?
Em seus versos, Gustavo propõe um “exercício do abismo”. Sua ideia me joga de volta em A atração do abismo, ensaio do catalão Rafael Argullol sobre a paisagem romântica, que leio em uma edição da Acantilado, de Barcelona. Ganhei o livro de Flavio Stein, que o trouxe de Buenos Aires. Não consigo parar de ler.
Diz Argullol: os românticos praticam uma “contemplação da contemplação”. O objeto dos românticos é a noite, isto é, um não-objeto. Não contemplar isso ou aquilo – permanecer na própria contemplação. Sabiam os românticos que o obscuro, servindo de moldura negativa, delineia e acentua a luz. Uma boa imagem é a sala de cinema. Para que nos concentremos na pequena tela, é preciso que, pelas bordas, acima, abaixo, atrás de nós, a escuridão domine.
Contemplar a contemplação é observar esse homem (Gustavo de Castro) que, precariamente, se apoia em um pequeno foco de esperança. Tanto que escreve poemas. A poesia não é tudo. É quase nada. Mas dela um poeta não se arrasta.
Continuo com Gustavo: “Quando a cortina de fumaça passou, tudo ficou vazio. Voltei então a me ver. O nada para me espelhar não necessitava de nada”. Só o poeta dispensa a cortina negra. Talvez nem ele: só em contraste com a memória esfumaçada, o espelho vazio enfim se imponha.
Vejam vocês como é difícil! Você começa a ler um poeta desconhecido. Abre as primeiras páginas, pisa os primeiros versos, cheio de receios e de esperanças. Deseja, logo, conhecê-lo. Gostei. Não gostei. Avança, mas os versos o atropelam. Não estão ali nem para que gostemos nem para que desgostemos. Estão ali à espera de uma leitura.
Volto, ainda uma vez, a Alberto Caeiro: “O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que estava ali”. É pouco, mas é. Talvez por isso Gustavo chame seus poemas de “vis”. O próprio poeta os menospreza, os toma como coisa menor. Apesar disso, ele escreve. Escreve e publica. Por quê? Encontro uma resposta em outro de seus versos: “Quem ama verdadeiramente não busca refúgio em ninguém”.
Muitos, hoje, se dedicam à poesia na esperança de vantagens. De refúgios. É como ostentar um título, uma descendência ou uma conta bancária, imaginam. Volto ao amigo distante que, às vezes, me telefona para dizer: “Hoje escrevi um poema extraordinário”. Gustavo faz o oposto: já no título de seu livro, anuncia a debilidade do que oferece. Algo assim: “Não sei se presta, mas está aí. É o que posso”.
Foi o que me levou a seu livro. Um poeta que conhece a delicadeza do que faz, e não foge disso. Atitude de poeta, e não de esnobe, ou de hipnotizador.
Poemas que atravessamos sem a ilusão de que irão nos acolher para sempre ou resolver nossas aflições. Lemos, viramos a página. Volto a Marianne Moore: “Nem era insincero ao dizer: – Faça de minha casa sua pousada./ Pousadas não são residências”.
José Castello, in Sábados inquietos

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