As
informações, na última página, são mínimas. O autor é
professor de Estética e dá aulas na Universidade de Brasília. É
seu segundo livro. E eis tudo. Contenho o impulso de pesquisar o nome
de Gustavo de Castro na web. Decido ler seu livro Poemas vis
(Casa das Musas, Brasília) sem nenhum apoio externo. A seco.
Vou
direto aos versos. Na página 26, não com uma resposta, mas com uma
pergunta, Gustavo me ajuda. “Três formas de abaixar?” E oferece,
em seguida, três respostas. “A primeira forma é abaixar para
cheirar a flor”, diz. Aproximar-se, se render, ceder espaço ao que
é. Chegar a cada coisa, e ali ficar, quieto.
A
proposta de Gustavo me remete aos versos de Alberto Caeiro, que nunca
me canso de ler: “A Natureza é partes sem um todo,/ Isto é talvez
o tal mistério de que falam”. O poeta se abaixa e cheira. Uma
flor, e não outra. Isso, e não aquilo. Ali se detém, em silêncio.
Nos dias de hoje, em que somos levados a querer tudo e não
conseguimos parar, isso é bem difícil.
Propõe
Gustavo uma segunda maneira de abaixar. “A segunda forma é abaixar
a crista”, diz, sem meias palavras. Diante da coisa – uma flor,
uma cidade, um poema –, se resignar, aceitar. Não desejar mais nem
procurar mais. Conter-se. “Menos, meu amigo”, ele escreve.
Nesse
ponto, me voltam os versos de Marianne Moore: “O sentimento mais
profundo sempre se mostra em silêncio;/ não em silêncio, mas
contenção”. Eu os reencontro em “Silêncio”, um dos Poemas
reunidos, de 1951. Piadas do acaso: o ano em que nasci.
Última
proposta de Gustavo: “A terceira forma é o exercício do abismo:
de vez em quando observar os vendavais”. Coisas de que fugimos:
ventanias, tempestades, desastres naturais. Não fugir, permanecer e
observar.
Ainda
não sei quem é Gustavo de Castro, mas começo a entender o que ele
busca. Na página 37, em um pequeno poema, ele me dá mais um sinal.
Escreve: “Oh Vera/ Nem toda maçã/ Apodrece/ Nem toda laranja/ É
de sumo/ Nem todo limão/ Emagrece”. As garantias? Não temos, mas
hoje quase todos se recusam a aceitar isso.
Escapam
os poetas, que por isso são poetas. Segue Gustavo: “Nem sempre a
verdade/ É a realidade/ Vera”. E ainda: “O real que se vê/ Não
se crê/ Vera”.
Para
que serve a poesia, senão para desarranjar nossas medíocres
convicções? Os grandes cientistas sabem disso: você chega a um
ponto, mas não deve se dar por satisfeito; logo outro abismo se abre
e o antigo ponto de apoio, que parecia tão firme, se esfarela. E
você despenca.
Mais
um salto e volto a Alberto Caeiro, que me ajuda a ler Gustavo:
“Procuro despir-me do que aprendi/ procuro esquecer-me do modo de
lembrar que me ensinaram”. Não, não é fácil. É humano que não
se consiga. Mais humano ainda que não se queira. Mas a poesia nos
incita a uma aproximação.
Poetas
desconhecidos incomodam. Ficamos aflitos: – É bom? É ruim? O
leitor espera que eu o ajude nessa decisão. Um leitor quer saber
onde pisa, ou se angustia. Crescemos assim, nossos pais nos ensinaram
a não falar com desconhecidos. Devemos imediatamente conhecer, ainda
que isso mate o que desejamos conhecer.
Sugere
Gustavo em outro poema: “Submerso nas cores, o destino do poeta é
ser porta-voz da noite”. Ecos tardios do Romantismo. Na Brasília
do século XXI? E por que não?
Em
seus versos, Gustavo propõe um “exercício do abismo”. Sua ideia
me joga de volta em A atração do abismo, ensaio do catalão
Rafael Argullol sobre a paisagem romântica, que leio em uma edição
da Acantilado, de Barcelona. Ganhei o livro de Flavio Stein, que o
trouxe de Buenos Aires. Não consigo parar de ler.
Diz
Argullol: os românticos praticam uma “contemplação da
contemplação”. O objeto dos românticos é a noite, isto é, um
não-objeto. Não contemplar isso ou aquilo – permanecer na própria
contemplação. Sabiam os românticos que o obscuro, servindo de
moldura negativa, delineia e acentua a luz. Uma boa imagem é a sala
de cinema. Para que nos concentremos na pequena tela, é preciso que,
pelas bordas, acima, abaixo, atrás de nós, a escuridão domine.
Contemplar
a contemplação é observar esse homem (Gustavo de Castro) que,
precariamente, se apoia em um pequeno foco de esperança. Tanto que
escreve poemas. A poesia não é tudo. É quase nada. Mas dela um
poeta não se arrasta.
Continuo
com Gustavo: “Quando a cortina de fumaça passou, tudo ficou vazio.
Voltei então a me ver. O nada para me espelhar não necessitava de
nada”. Só o poeta dispensa a cortina negra. Talvez nem ele: só em
contraste com a memória esfumaçada, o espelho vazio enfim se
imponha.
Vejam
vocês como é difícil! Você começa a ler um poeta desconhecido.
Abre as primeiras páginas, pisa os primeiros versos, cheio de
receios e de esperanças. Deseja, logo, conhecê-lo. Gostei. Não
gostei. Avança, mas os versos o atropelam. Não estão ali nem para
que gostemos nem para que desgostemos. Estão ali à espera de uma
leitura.
Volto,
ainda uma vez, a Alberto Caeiro: “O que me apontaram nunca estava
ali: estava ali só o que estava ali”. É pouco, mas é. Talvez por
isso Gustavo chame seus poemas de “vis”. O próprio poeta os
menospreza, os toma como coisa menor. Apesar disso, ele escreve.
Escreve e publica. Por quê? Encontro uma resposta em outro de seus
versos: “Quem ama verdadeiramente não busca refúgio em ninguém”.
Muitos,
hoje, se dedicam à poesia na esperança de vantagens. De refúgios.
É como ostentar um título, uma descendência ou uma conta bancária,
imaginam. Volto ao amigo distante que, às vezes, me telefona para
dizer: “Hoje escrevi um poema extraordinário”. Gustavo faz o
oposto: já no título de seu livro, anuncia a debilidade do que
oferece. Algo assim: “Não sei se presta, mas está aí. É o que
posso”.
Foi
o que me levou a seu livro. Um poeta que conhece a delicadeza do que
faz, e não foge disso. Atitude de poeta, e não de esnobe, ou de
hipnotizador.
Poemas
que atravessamos sem a ilusão de que irão nos acolher para sempre
ou resolver nossas aflições. Lemos, viramos a página. Volto a
Marianne Moore: “Nem era insincero ao dizer: – Faça de minha
casa sua pousada./ Pousadas não são residências”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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