quarta-feira, 24 de outubro de 2018

À uma hora da madrugada

Enfim, só! Já não se ouve o rodar dos carros retardados e sonolentos. Durante algumas horas teremos o silêncio, se não o repouso. A tirania da face humana desapareceu, enfim, e eu só terei de sofrer por mim mesmo.
Enfim! Posso agora revigorar-me num banho de trevas! Antes, porém, mais uma volta na fechadura. Parece-me que essa volta de chave aumentará minha solidão e fortificará as barricadas que ora me separam do mundo.
Vida horrível! Vida medonha! Recapitulemos o dia: Vi vários homens de letras, um dos quais me perguntou se se podia ir à Rússia por via terrestre, pois decerto tomava a Rússia por uma ilha...
Discuti generosamente com o diretor de uma revista, que a cada objeção respondia: “Aqui é o partido dos homens honestos”, o que significa que todos os outros jornais são redigidos por tratantes...
Cumprimentei uma vintena de pessoas, quinze das quais eu não conheço...
Distribuí apertos de mão na mesma proporção, sem ter tido o cuidado de comprar luvas...
Subi, para matar o tempo, durante uma tempestade, à casa de uma dançarina que me pediu que lhe desenhasse uma túnica de Vênus...
Fiz a corte a um diretor, que me disse ao despachar-me: “Você talvez fizesse bem em dirigir-se a Z..., que é o mais grosseiro, o mais tolo e o mais famoso de todos os meus autores. Com ele, talvez você pudesse arranjar alguma coisa. Procure-o e depois veremos...” Gabei-me, não sei porquê, de vários atos desonestos que não cometi e neguei outros que pratiquei com alegria: delito de fanfarronada, crime de respeito humano. Recusei a um amigo um favor fácil e dei uma recomendação por escrito a um perfeito cretino.
Ufa! Que terminei.
Desgostoso de todos e de mim mesmo, eu desejaria compensar-me e envaidecer-me um pouco no silêncio da solidão da noite. Almas dos que amei, almas dos que cantei, fortificai-me, apoiai-me, afastai de mim a mentira e os vapores de corrupção do mundo! E vós, Senhor, meu Deus, concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que me provem não ser eu o último dos homens, nem inferior aos que desprezo.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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