Em
meu primeiro artigo, eu estava concentrado nos males resultantes de
quaisquer sistemas de dogmas apresentados para sua aceitação não
com base na verdade, mas em sua utilidade social. O que eu disse se
aplica igualmente ao cristianismo, ao comunismo, ao islamismo, ao
budismo, ao hinduísmo e a todos os sistemas teológicos, exceto
quando contam com fundamentos que fazem um apelo universal, como o
dos homens de ciência. Existem, no entanto, argumentos especiais
apresentados em favor do cristianismo, relativos a seus supostos
méritos especiais. Estes foram expostos, de maneira eloquente e com
demonstrações de erudição, por Hebert Butterfield, professor de
História Moderna na Universidade de Cambridge, de modo que o tomarei
como porta-voz do amplo conjunto de opiniões do qual ele é adepto.
O
professor Butterfield busca garantir certas vantagens controversas
por meio de concessões que o fazem parecer mais liberal do que de
fato é. Reconhece que a Igreja cristã se fiou na perseguição e
que foi a pressão vinda de fora que fez com que fosse abandonado
essa prática. Ele reconhece que a tensão atual entre a Rússia e o
Ocidente é resultado da política de poder que poderia ser esperada
mesmo que o governo da Rússia tivesse continuado a aderir à Igreja
Ortodoxa Grega. Reconhece que algumas das virtudes que considera
especificamente cristãs foram apresentadas por alguns
livres-pensadores e têm estado ausentes do comportamento de muitos
cristãos. Mas, apesar dessas concessões, ele continua defendendo
que os males de que o mundo sofre serão curados pela adesão ao
dogma cristão, e inclui no dogma cristão o mínimo necessário: não
apenas a crença em Deus e na imortalidade, mas também a crença na
Encarnação. Enfatiza a ligação entre o cristianismo e certos
acontecimentos históricos, e aceita esses acontecimentos como
históricos com base em evidências que certamente não o
convenceriam, se não estivessem ligadas à sua religião. Não penso
que a evidência relativa ao nascimento virginal seja tal que pudesse
convencer qualquer questionador imparcial, se fosse apresentada fora
do círculo de crenças teológicas a que ele estava acostumado.
Existem numerosas histórias semelhantes na mitologia pagã, mas
ninguém sonha em levá-las a sério. O professor Butterfield, no
entanto, apesar de ser historiador, parece mostrar-se bastante
desinteressado de questões de historicidade, sempre que o assunto
está relacionado às origens do cristianismo. Seu argumento, privado
de sua urbanidade e de seu ar enganoso de liberalidade, pode ser
exposto de maneira grosseira, porém exata, a saber: “Não vale a
pena questionar se Cristo realmente nasceu de uma Virgem, concebido
pelo Espírito Santo, porque, tendo sido esse ou não o caso, a
crença de que o foi oferece a melhor esperança de fuga dos
problemas atuais do mundo”. Não se encontra em lugar algum da obra
do professor Butterfield a mínima tentativa de provar a verdade de
qualquer dogma cristão. Há apenas o argumento pragmático de que a
crença no dogma cristão é útil. Há muitos aspectos, no argumento
do professor Butterfield, que não são colocados com toda a clareza
e precisão que seria de se desejar, e temo que a razão disso é que
a clareza e a precisão os tornariam implausíveis. Penso que seu
argumento, despido do que não é essencial, é este: seria muito bom
se as pessoas amassem seus próximos, mas elas não mostram muita
inclinação para tal; Cristo disse que isso era necessário, e, se
elas acreditarem que Cristo era Deus, estarão mais propensas a
prestar atenção aos ensinamentos d’Ele, a respeito dessa questão,
do que se não acreditarem; por conseguinte, homens que desejam que
as pessoas amem seus próximos tentarão convencê-las de que Cristo
era Deus.
As
objeções a esse tipo de argumentação são tantas que é difícil
saber por onde começar. Em primeiro lugar, o professor Butterfield e
todos os que pensam como ele estão convencidos de que é bom amar o
próximo, e suas razões para sustentar essa visão não derivam dos
ensinamentos de Cristo. Ao contrário, é porque já sustentam essa
visão que consideram os ensinamentos de Cristo evidência de sua
divindade. Isso quer dizer que eles têm não uma ética baseada na
teologia, mas uma teologia baseada em sua ética. Aparentemente, no
entanto, defendem que as bases não teológicas que levam a pensar
que é bom amar o próximo provavelmente não terão um apelo muito
amplo e, assim, passam a inventar outros argumentos, esperando que
estes sejam mais eficientes. Esse é um procedimento muito perigoso.
Muitos protestantes costumavam pensar que era tão diabólico
desrespeitar o sabá quanto cometer assassinato. Se os convencêssemos
de que não era diabólico desrespeitar o sabá, poderiam inferir que
não era diabólico cometer assassinato. Toda ética teológica tem
uma parte que pode ser defendida de maneira racional e outra parte
que não passa da corporificação de tabus supersticiosos. A parte
que pode ser defendida racionalmente deveria ser, assim, defendida,
já que, de outra maneira, aqueles que descobrirem a irracionalidade
da outra parte poderão rejeitar o todo de maneira temerária.
Mas
será que o cristianismo, de fato, defendeu uma moralidade melhor do
que a de seus rivais e oponentes? Não vejo como algum estudante
honesto de história possa afirmar que esse é o caso. O cristianismo
tem se distinguido das outras religiões por sua maior prontidão à
perseguição. O budismo jamais foi uma religião persecutória. O
Império dos Califas era muito mais gentil para com os judeus e
cristãos do que os Estados cristãos para com os judeus e
maometanos. Não incomodava os judeus e os cristãos, desde que lhe
pagassem tributos. O antissemitismo foi promovido pelo cristianismo
desde o instante em que o Império Romano se tornou cristão. O
fervor religioso das Cruzadas levou a massacres de judeus na Europa
Ocidental. Foram cristãos que acusaram Dreyfus injustamente, e
livres-pensadores que garantiram sua reabilitação final. Em tempos
modernos, abominações foram defendidas pelos cristãos, não apenas
quando os judeus eram as vítimas, mas também em outras situações.
As abominações do governo do rei Leopoldo no Congo foram escondidas
ou minimizadas pela Igreja e só tiveram fim devido a agitações
causadas principalmente por livres-pensadores. Toda afirmação de
que o cristianismo tem exercido influência moral elevada só pode
ser mantida pela completa ignorância ou falsificação das
evidências históricas.
A
resposta habitual é que os cristãos que faziam as coisas que
deploramos não eram verdadeiros cristãos, na medida em que
não obedeciam aos ensinamentos de Cristo. Claro que é possível,
igualmente, argumentar que o governo soviético não consiste em
verdadeiros marxistas, porque Marx ensinava que os eslavos são
inferiores aos alemães, e essa doutrina não é aceita pelo Kremlin.
Os seguidores de um mestre sempre se afastam, em alguns pontos, da
doutrina por ele professada. Aqueles que têm como objetivo fundar
uma igreja precisam se lembrar disso. Toda igreja desenvolve um
instinto de autopreservação e minimiza as partes da doutrina do
fundador que não contribuem para esse objetivo. Mas, de todo modo, o
que os apologistas modernos chamam de cristianismo “verdadeiro” é
algo que depende de um processo muito seletivo. Ignora muito daquilo
que se encontra nos Evangelhos: por exemplo, a parábola das ovelhas
e dos cabritos, bem como a doutrina de que os maldosos sofrerão
tormento eterno no fogo do inferno. Escolhe certas partes do Sermão
da Montanha, apesar de até estas rejeitar na prática. Deixa que a
doutrina da não resistência, por exemplo, seja praticada apenas por
não cristãos, como Gandhi. Os preceitos que favorece em particular
são considerados como imbuídos de moralidade tão elevada que devem
ter mesmo origem divina. E, no entanto, o professor Butterfield deve
saber que esses preceitos foram proferidos por judeus antes da época
de Cristo. Podem ser encontrados, por exemplo, nos ensinamentos de
Hillel e nos “Testamentos dos Doze Patriarcas”, sobre os quais o
reverendo dr. R.H. Charles, autoridade proeminente nessa questão,
diz: “O Sermão da Montanha reflete, em várias passagens, o
espírito e até mesmo reproduz as frases exatas do nosso texto:
muitas passagens dos Evangelhos exibem vestígios do mesmo, e São
Paulo parece ter usado o livro como vade-mécum”. O dr. Charles é
da opinião de que Cristo devia conhecer aquela obra. Se, como às
vezes nos é dito, a altivez dos ensinamentos éticos prova a
divindade de seu autor, é o autor desconhecido desses Testamentos
que deve ter sido divino.
É
inegável que o mundo está em mau estado, mas não há a menor razão
histórica para supor que o cristianismo ofereça uma saída. Nossos
problemas surgiram, com a inexorabilidade da tragédia grega, a
partir da Primeira Guerra Mundial, da qual os comunistas e os
nazistas foram produto. A Primeira Guerra Mundial foi completamente
cristã em sua origem. Os três imperadores eram devotos, assim como
os integrantes mais belicosos do Gabinete Britânico. A oposição à
guerra partiu, na Alemanha e na Rússia, dos socialistas, que eram
anticristãos; na França, de Jaurès, cujo assassínio foi aplaudido
por cristãos convictos; na Inglaterra, de John Morley, um ateu
notório. As características mais perigosas do comunismo são
remanescentes da Igreja medieval. Consistem da aceitação fanática
de doutrinas reunidas em um Livro Sagrado, da falta de disposição
para examinar essas doutrinas de maneira crítica e da perseguição
selvagem àqueles que as rejeitam. Não é uma retomada do fanatismo
e do preconceito no Ocidente o que devemos procurar para obter uma
resposta feliz. Tal retomada, se ocorrer, só significará que as
características odiosas do regime comunista se tornaram universais.
O mundo precisa é de pessoas razoáveis, tolerância e compreensão
da interdependência entre as partes da família humana. Essa
interdependência foi enormemente aumentada pelas invenções
modernas, e os argumentos puramente mundanos para que se tenha uma
atitude gentil para com o próximo são muito mais fortes do que eram
anteriormente. É para esse tipo de consideração que devemos olhar,
e não para o retorno a mitos obscurantistas. A inteligência,
pode-se dizer, causou nossos problemas; mas não é a desinteligência
que irá curá-los. Apenas uma inteligência mais sábia poderá
tomar o mundo mais feliz.
Bertrand
Russell, in Por que não sou cristão
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