quarta-feira, 19 de setembro de 2018

O imortal - III

Os que tiverem lido com atenção o relato de meus trabalhos lembrarão que um homem da tribo me seguiu, como um cão poderia seguir-me, até a sombra irregular dos muros. Quando saí do último porão, encontrei-o na boca da caverna. Estava atirado na areia, onde desenhava grosseiramente e apagava uma fileira de sinais que eram como as letras dos sonhos, que se está a ponto de entender e logo se juntam. A princípio, pensei que se tratava de alguma escrita bárbara; depois vi que é absurdo imaginar que homens que não chegaram à palavra cheguem à escrita. Além disso, nenhuma das formas era igual a outra, o que excluía ou afastava a possibilidade de serem simbólicas. O homem as traçava, olhava para elas e as corrigia. Subitamente, como se esse jogo o enfastiasse, apagou-as com a palma e o antebraço. Olhou-me, não pareceu reconhecer-me. Entretanto, tão grande era o alívio que me inundava (ou tão grande e medrosa minha solidão) que me pus a pensar que esse rudimentar troglodita, que me olhava do chão da caverna, estivera me esperando. O sol escaldava a planície; quando empreendemos o regresso à aldeia, sob as primeiras estrelas, a areia era ardente sob os pés. O troglodita me precedeu; essa noite concebi o propósito de ensiná-lo a reconhecer, e talvez a repetir, algumas palavras. O cachorro e o cavalo (refleti) são capazes do primeiro; muitas aves, como o rouxinol dos Césares, do último. Por muito grosseiro que fosse o entendimento de um homem, sempre seria superior ao de irracionais.
A humildade e a miséria do troglodita trouxeram-me à memória a imagem de Argos, o velho cão moribundo da Odisseia, e assim lhe pus o nome de Argos e tentei ensiná-lo. Fracassei e tornei a fracassar. Os arbítrios, o rigor e a obstinação foram de todo inúteis. Imóvel, com os olhos inertes, não parecia perceber os sons que eu procurava inculcar-lhe.
A alguns passos de mim, era como se estivesse muito longe. Deitado na areia, como uma pequena e arruinada esfinge de lava, deixava que sobre si girassem os céus, desde o crepúsculo do dia até o da noite. Julguei impossível que não se apercebesse de meu propósito. Lembrei-me de que se diz entre os etíopes que os macacos deliberadamente não falam para que não os obriguem a trabalhar e atribuí a suspicácia ou a temor o silêncio de Argos. Dessa fantasia passei a outras ainda mais extravagantes. Pensei que Argos e eu participávamos de universos diferentes; pensei que nossas percepções eram iguais, mas que Argos as combinava de outra maneira e construía com elas outros objetos; pensei que talvez não houvesse objetos para ele, mas um vertiginoso e contínuo jogo de impressões brevíssimas. Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a possibilidade de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de verbos impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim foram morrendo os dias e com os dias os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu uma manhã. Choveu, com lentidão poderosa.
As noites do deserto podem ser frias, mas aquela tinha sido um fogo. Sonhei que um rio da Tessália (a cujas águas eu restituíra um peixe de ouro) vinha resgatar-me; sobre a vermelha areia e a negra pedra eu o ouvia aproximar-se; o frescor do ar e o rumor atarefado da chuva me despertaram. Corri para recebê-la, despido. Declinava a noite; sob as nuvens amarelas, a tribo, não menos feliz que eu, oferecia-se aos vívidos aguaceiros numa espécie de êxtase. Pareciam coribantes possuídos pela divindade. Argos, olhos postos na abóbada celeste, gemia; torrentes rolavam-lhe pelo rosto, não só de água, mas (soube-o depois) de lágrimas. Argos, gritei, Argos.
Então, com mansa admiração, como se descobrisse uma coisa perdida e esquecida há muito tempo, Argos balbuciou estas palavras: “Argos, cão de Ulisses”. E depois, também sem olhar-me: “Este cão atirado no esterco”.
Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuirmos que nada é real. Perguntei-lhe o que sabia da Odisseia. A prática do grego lhe era penosa; tive de repetir a pergunta.
Muito pouco” — disse. “Menos que o rapsodo mais pobre. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei.”
Jorge Luis Borges, in O Aleph

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