terça-feira, 4 de setembro de 2018

Um enforcamento

Foi na Birmânia, numa manhã encharcada pelas chuvas. Uma luz pálida, como papel estanhado amarelo, incidia de viés nos muros elevados do pátio da prisão. Aguardávamos do lado de fora das celas dos condenados, uma fileira de barracões providos de barras duplas, iguais a pequenas jaulas para animais. Cada cela media cerca de três metros quadrados e estava praticamente vazia, com exceção de uma cama de tábuas e uma jarra de água potável. Em algumas delas, homens morenos estavam em silêncio, de cócoras, em frente das barras internas, envoltos em cobertores. Eram os condenados, que deveriam ser enforcados dali a uma ou duas semanas.
Um prisioneiro fora tirado da cela. Um hindu, um homenzinho franzino de cabeça raspada e olhos brilhantes vagos. Tinha um bigode espesso e hirsuto, absurdamente grande em relação ao corpo, que lembrava muito o bigode de um cômico de cinema. Seis guardas indianos avantajados o vigiavam e o preparavam para o cadafalso. Dois se postavam de lado com espingardas e baionetas adaptadas, enquanto os outros o algemavam, introduziam uma corrente entre as algemas e a prendiam ao cinto, atando-lhe os braços bem apertados junto à lateral do corpo. Acercavam-se dele bem de perto, sempre com as mãos nele, tocando-o com cautela e afago, como se durante todo o tempo o apalpassem para se certificar de que ele estava presente. Como quem pega um peixe ainda vivo que pode saltar de volta para a água. Mas ele se manteve bastante submisso, rendendo os braços frouxos às cordas, como se mal notasse o que estava acontecendo.
Quando deu oito horas, um toque de corneta, desoladamente débil no ar úmido, flutuou do quartel distante. O superintendente da prisão, que estava distante de nós, a cutucar, taciturno, os cascalhos do chão com a bengala, ergueu a cabeça ao ouvir o toque. Era um médico militar, com um bigode grisalho espetado e uma voz rouca.
Francis, apresse-se, pelo amor de Deus”, disse, irritado. “A esta hora o homem já deveria estar morto. Ainda não estão preparados?”
Francis, o carcereiro-chefe, um dravidiano gordo de roupa de dril e óculos dourados, acenou com a mão negra.
Sim senhor, sim senhor”, murmurou. “Tudo está preparado satisfatoriamente. O carrasco está esperando. Prosseguiremos.”
Pois então marchem depressa. Os prisioneiros não terão café-da-manhã antes de terminar este serviço.”
Seguimos para o cadafalso. Dois carcereiros de cada lado do prisioneiro, os fuzis inclinados; dois outros caminhavam muito próximos dele, agarrando-o pelo braço e pelo ombro, como se ao mesmo tempo o empurrassem e apoiassem. O restante de nós, juízes e outros mais, seguia atrás. De repente, quando tínhamos avançado dez metros, a fileira estacou sem nenhuma ordem ou aviso. Uma coisa espantosa acontecera — um cão, vindo só Deus sabe de onde, aparecera no pátio. Veio saltando entre nós com uma rajada de latidos altos e pulava a nossa volta sacudindo o corpo inteiro, numa alegria impetuosa por ter encontrado tantos seres humanos juntos. Era um cão peludo grande, metade airedale , metade vira-lata. Por um momento saltitou em torno de nós, depois, antes que alguém o detivesse, correu na direção do prisioneiro e, aos saltos, tentou lamber-lhe o rosto. Todos ficaram pasmos, demasiado surpresos até para agarrar o cão.
Quem deixou este maldito animal entrar aqui?”, perguntou o superintendente, irritado. “Que alguém o apanhe!”
Um guarda, separado da escolta, correu desajeitado atrás do cão, mas este dançava e pulava fora de seu alcance, tomando tudo como parte da brincadeira. Um jovem carcereiro eurasiano pegou um punhado de cascalho e tentou afugentar o cão, porém este se esquivou das pedras e tornou a se aproximar de nós. Seus latidos ecoavam das paredes do presídio. O prisioneiro, sob o domínio dos dois guardas, olhava com indiferença, como se aquilo fosse outra formalidade do enforcamento. Transcorreram alguns minutos até que alguém conseguisse capturar o cão. Depois passamos meu lenço de bolso pela coleira e prosseguimos mais uma vez, o cão ainda a nos solicitar e a choramingar.
O cadafalso ficava a uns cinquenta metros. Observei as costas morenas e desnudas do prisioneiro, que caminhava na frente. Andava desajeitadamente com os braços amarrados, mas com bastante firmeza, com aquele modo bamboleado de andar dos indianos, que nunca endireitam os joelhos. A cada passo os músculos deslizavam de volta ao lugar, os cachos de cabelo sobre o couro cabeludo subiam e desciam numa dança, os pés se imprimiam no cascalho molhado. E uma vez, apesar dos homens que lhe agarravam cada ombro, pisou ligeiramente de lado para desviar de uma poça d’água no caminho.
É curioso, mas até aquele momento eu jamais me dera conta do que significava matar um homem saudável e consciente. Quando vi o prisioneiro pisar de lado para desviar da poça d’água, percebi o mistério, a injustiça execrável de interromper uma vida no auge. Aquele homem não estava agonizando, estava tão vivo quanto nós. Todos os órgãos de seu corpo funcionavam — os intestinos digeriam o alimento, a pele se renovava, as unhas cresciam, tecidos se formavam —, todos trabalhavam duro numa solene sandice. As unhas continuariam a crescer quando ele estivesse no alçapão, quando estivesse caindo no ar com um décimo de segundo para viver. Os olhos tinham visto o cascalho amarelo e as paredes cinzentas, e o cérebro ainda se lembraria, anteveria, pensaria — pensaria até sobre poças d’água. Ele e nós éramos um grupo de homens caminhando juntos, vendo, ouvindo, sentindo, percebendo o mesmo mundo; e em dois minutos, com um estalo súbito, um de nós partiria — uma mente a menos, um mundo a menos.
O cadafalso ficava num pequeno pátio, separado da área principal da prisão, invadido por ervas daninhas espinhentas e altas. Era uma construção de tijolos semelhante a um barracão de três lados, com tábuas de madeira no alto e, acima delas, duas vigas e uma barra transversal, de onde pendia a corda. O carrasco, um sentenciado de cabelo grisalho que trajava o uniforme branco da prisão, aguardava ao lado da máquina. Ele nos cumprimentou com uma mesura servil quando entramos. Obedecendo a uma palavra de Francis, os dois soldados agarraram o prisioneiro com mais proximidade ainda, meio que conduziram, meio que empurraram o homem para o cadafalso e o ajudaram a subir cambaleante a escada. Depois o carrasco subiu e fixou a corda em volta do pescoço do prisioneiro.
Nós esperamos, a uma distância de cinco metros. Os soldados formaram um círculo desigual em redor do cadafalso. E então, quando o laço foi fixado, o prisioneiro começou a clamar por seu deus. Era um clamor alto e reiterado de “Ram! Ram! Ram! Ram!”, não urgente e terrível como uma oração ou um grito de socorro, porém regular, ritmado, quase como o dobrar de um sino. O cão respondia ao som com um uivo. O carrasco, ainda parado no cadafalso, tirou um pequeno saco de algodão, semelhante a um saco de farinha, e o enfiou na cabeça do prisioneiro. Mas o som, abafado pelo tecido, ainda persistia, repetidamente: “Ram! Ram! Ram! Ram!”.
O carrasco desceu e se pôs de prontidão, segurando a alavanca. Parecia que minutos haviam se passado. O brado regular e abafado do prisioneiro continuava sem cessar: “Ram! Ram! Ram! Ram!”, jamais vacilando nem por um instante. O superintendente, a cabeça inclinada sobre o peito, cutucava devagar o chão com a bengala; talvez contasse os gritos, permitindo ao prisioneiro um número fixo — cinquenta, talvez, ou cem. Todos tinham mudado de cor. Os indianos ficaram cinza, como café ruim, e uma ou duas baionetas tremiam. Olhávamos para o homem amarrado e encapuzado no alçapão e ouvíamos os brados — cada brado outro segundo de vida; o mesmo pensamento ocorria a todos nós: oh, mate-o depressa, acabe com isso, pare esse barulho abominável!
De repente o superintendente tomou uma decisão. Erguendo a cabeça, fez um movimento veloz com a bengala. “Xalo!”, gritou, quase com fúria.
Soou um tinido, ao qual se seguiu um silêncio profundo. O prisioneiro desaparecera, e a corda volteava. Soltei o cão, e ele galopou de imediato para trás do cadafalso; mas quando chegou lá estacou, latiu e se retirou para um canto do pátio, onde ficou entre as ervas daninhas, olhando para nós com temor. Demos a volta no cadafalso para inspecionar o corpo do prisioneiro. Ele pendia com os dedos dos pés apontados para baixo, girando muito devagar, bem morto.
O superintendente estendeu a bengala e cutucou o corpo, que oscilou de leve.
Ele está bem”, disse o superintendente. Saiu de baixo do cadafalso e soltou um suspiro profundo. O ar taciturno sumiu de repente de seu rosto. Ele consultou o relógio de pulso. “São oito e oito. Bom, por esta manhã é só, graças a Deus.”
Os guardas removeram as baionetas e se afastaram marchando. O cão, sóbrio e ciente de que havia se comportado mal, seguiu-os furtivamente. Saímos do pátio do cadafalso, passamos pelas celas que alojavam os prisioneiros à espera da execução, até chegarmos ao grande pátio central da prisão. Os sentenciados, sob o comando de soldados armados com porretes, já recebiam a refeição da manhã. Acocorados em longas filas, cada homem segurava uma panelinha de lata, enquanto dois soldados com baldes caminhavam enchendo cada uma com conchas de arroz; parecia uma cena bastante doméstica e alegre após o enforcamento. Sentíamos um grande alívio depois de a tarefa ter sido cumprida. Cada um de nós tinha o impulso de cantar, sair correndo, rir um riso contido. De repente todo mundo começou a conversar animadamente.
O rapaz eurasiano que caminhava a meu lado indicou com um sinal de cabeça o caminho pelo qual tínhamos vindo, dando um sorriso astuto:
Sabe, senhor, o nosso amigo”, referia-se ao homem morto, “quando soube que a apelação dele tinha sido negada, mijou no chão da cela. De medo. Por favor, senhor, aceite um dos meus cigarros. O senhor não gosta da minha nova cigarreira de prata? Comprei do sujeito que vende caixas, duas rupias e oito anás. Estilo europeu de primeira.”
Várias pessoas riram — de quê, ninguém parecia ter certeza.
Francis caminhava ao lado do superintendente, a tagarelar.
Bem, senhor, tudo correu da maneira mais satisfatória. Tudo terminou assim... de estalo! Não é sempre assim, ah, não! Soube de casos em que o médico foi obrigado a entrar debaixo do cadafalso e puxar as pernas do prisioneiro para garantir a morte. Muito desagradável!”
Querendo se safar, é? Isto é ruim”, retrucou o superintendente.
Ah, senhor, é pior quando resistem! Eu me lembro de um homem que se agarrou nas barras da cela quando fomos tirá-lo de lá. O senhor não vai nem acreditar, mas foi preciso seis soldados para desalojá-lo, três puxando cada perna. Dialogamos com ele. ‘Meu bom camarada’, dissemos, ‘pense na dor toda e no trabalho que está nos dando!’ Mas não, ele não escutava! Ah, ele foi muito difícil!”
Dei-me conta de que estava rindo bem alto. Todo mundo estava rindo. Até o superintendente deu um sorriso largo e tolerante.
É melhor que vocês venham tomar um trago”, disse ele, com muita cordialidade. “Tenho uma garrafa de uísque no carro. Vai nos fazer bem.”
Passamos pelos enormes portões duplos da prisão e saímos para a rua.
Puxando as pernas dele!”, exclamou de repente um juiz birmanês, soltando um riso alto. Nós começamos a rir de novo. Naquele momento, a anedota de Francis pareceu extraordinariamente engraçada. Tomamos um trago juntos, nativos e europeus, muito amigáveis. O morto estava a uma distância de cem metros.
George Orwell, in Dentro da baleia e outros ensaios

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