Eu
havia sempre laborado na arte da poesia, desde os mais verdes anos.
Às vezes, em meio aos brinquedos com os irmãos, na Ilha do
Governador, fugia e ia me ocultar no quarto, a folha de papel diante
de mim.
Era
tão estranho aquilo! Eu de nada sabia ainda, senão que tinha nove
anos e Cocotá era o meu mundo, com sua praia de lodo, seu cajueiro e
seus guaiamuns. Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me
pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho. Passavam-me os
mais doces pensamentos, a imagem de minha mãe cantando, o rosto de
Cacilda, minha namorada, da Escola Afrânio Peixoto, o beijo que
Branca me dera - menina danada! - em plena Igreja São João Batista,
quando as cabeças dos fiéis se haviam mansamente curvado para a
bênção.
Mas
de alguma coisa carecia, que me arrastava logo a antologias (muito
obrigado, Fausto Barreto; muito obrigado, Carlos de Laet!) ante as
quais morria de inveja. Ah, escrever um soneto como o “Anoitecer”,
de Raimundo Correia! Minha maior tentação era, no entanto, meu
próprio pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta inédito,
cujos manuscritos folheava deslumbrado, os mesmos que Bilac lera e
cuja publicação aconselhara.
Lembro
que havia entre eles um soneto que levava meu nome, feito quando eu
ainda no ventre materno. Cada vez que o lia, as lágrimas corriam-me
livremente - e quantas não enxuguei sobre o papel amarelado para que
não borrassem a linha antiga... Partia, ato contínuo, para a folha
branca que me esperava, virgem, a procurar um tema, uma frase, uma
palavra que me desse para abrir as portas daquela cidade cobiçada,
cujos rumores chegavam-me maravilhosamente acústicos.
Pus-me
a imitar. Primeiro meu pai, mais à mão, menos preocupado com a
glória literária, a que não dava grande crédito. Um dia, como um
ladrão, levei comigo, enfiada por dentro da camisa de banho, uma
longa pastoral em decassílabos, que fui mostrar a Célia, minha
garota da Ilha, uma menina grande e mais velha, que se entretinha de
mim.
-
Que beleza! - disse-me ela pondo as mãos nas minhas. - Você quer
dar ele para mim?
Covarde,
dei. Hoje a pastoral de meu pai anda por aí, não sei onde, talvez
na gaveta de uma cômoda no Encantado, onde morava quando vinha ao
Rio; talvez em Miami, Acapulco ou Pago-Pago, para onde a tenha levado
sua imensa tontice.
*
* *
Muito
plagiei, a princípio. Primeiro timidamente, depois como um possesso.
Castro Alves, companheiro de noitadas de meu tio-avô Mello Moraes
Filho, emprestou-me sua revolta condoreira. Olavo Bilac cedeu-me o
diamante com que cortava os duros cristais de sua poesia. Guilherme
de Almeida presenteou-me com seu geraldysmo, sua reticência ilustre,
seu sorriso imóvel e seus punhos de renda. Menotti deu-me seu
lorgnon, seus crachás, seu jucamulatismo. Descia de Antero a Júlio
Dantas, perpetrando ceias, desvendando seios, ai de mim. Abria a
antologia à toa e esperava. Casemiro? Casemiro! E assim se foi
povoando de negros caracteres impecáveis um grande livro de capa
preta, rubricado “Prefeitura do Distrito Federal”, sobre que,
tenho a impressão, um funcionário qualquer, meu parente, havia
feito mão baixa. Mas que importava? Era um livro belo, um caderno de
perfeito almaço, da grossura da minha ambição de criar poesia,
vasto bastante para o menino que queria voar com asas roubadas, essas
que tão cuidadosamente punha nas omoplatas para o exercício noturno
dentro de seu quarto dentro da Ilha dentro da baía dentro da cidade
dentro do país dentro do mar dentro do mundo.
Um
dia conheci um poeta como mandam as regras, com livro publicado e
tudo o mais. Chamava-se João Lyra Filho, era moço nortista,
apaixonado, e recitava Augusto dos Anjos por trás de uma cadeira.
Augusto dos Anjos! Como me chocava aquela ousadia de palavras, a
misturar a miséria ao sublime, o esterco à estrela, a podridão do
túmulo à beleza da vida! Preferia Adelmar, para quem, naquele
tempo, voltavam-se os olhos fiéis de João Lyra Filho como os do
sacristão para o padre.
Certa
vez, depois de uma noite de angústia, resolvi mostrar-lhe meus
versos. Reunira-os sob o nome de “Foederis arca”. Mas o poeta não
gostou. Disse-me de modo brando que desistisse daquilo. Falou-me da
predestinação poética, que eu não tinha. Meu negócio devia ser
outro. Faltava-me aquele imponderável que os amantes do belo
representam esfregando sutilmente a polpa do polegar contra a dos
outros dedos, mas não como para indicar o vil metal: mais devagar,
como a destilar a própria substância imanente da arte.
O
poetinha aprendiz desistiu?
Coisíssima
nenhuma! Prossegui firme, inabalável, entre alexandrinos,
decassílabos e redondilhas, a perpetrar odes, sonetos, elegias,
éclogas, cromos e acrósticos que dava fielmente às namoradas que
fui semeando, da Gávea a Sabará.
Era
o martírio da poesia, em todo o meu desvario.
*
* *
Uma
noite - eu tinha 17 anos - Otávio de Faria e eu fomos tocando a pé
da Galeria Cruzeiro até a Gávea, onde ficava minha casa, na rua
Lopes Quintas. Não era infrequente fazermos isso, à base da
conversa. Era um hábito da amizade entre o calouro e o veterano da
Faculdade de Direito do Catete, aquele passeio noturno povoado das
sombras de Nietzsche e da pantomima de Chaplin. Lembro-me que à
meia-noite, bem alto, na estrada de Orion, brilhava uma lua como
nunca vi mais cheia, a cabeleira solta, os seios nus, o olhar de
louca a me varar o peito de súplicas e doestos.
Era
tal o mistério dessa noite que agora mesmo, escrevendo na minha sala
noturna, sinto os cabelos se me içarem de leve, como se fosse sentir
novamente sobre eles a mão macia da lua cheia.
Deixei
Octavio de Faria no seu bonde de volta e subi Lopes Quintas, rumo a
casa. O sossego era perfeito, total o sono do mundo. Só às vezes,
subitamente, dos espaços descia um braço de vento que varria as
folhas secas da rua e empinava papéis velhos como hipocampos.
Transpus, ansiado, a distância familiar que me levava para alguma
coisa que sentia vir mas não sabia o que era. Em casa, galguei
rápido as escadas para o meu quarto no primeiro andar, e fui
sentar-me ofegante à escrivaninha antiga, a mesma que tenho hoje, a
mesma que suportou na infância o peso da minha ambição de ser
poeta. A janela estava aberta, e em sua moldura a lua viera se
postar, os olhos cravados em mim.
Não
sei como foi, mas sei que foi diferente de tudo o que sentia antes.
Meus ouvidos, como conchas, pareciam recolher os ruídos mais
longínquos do mar que estilhaçava em mim. Ouvi o sopro da noite, o
cair das folhas, o germinar das plantas que boliam fora, na mata
próxima ao Corcovado, e ali perto, no jardim. Pombas vazaram do meu
coração, deixando-me dentro, a se debater, a grande ave inimiga que
me feria com suas asas querendo sair também, fugir, voar para longe.
Senti-me sem peso, sem dimensão, sem matéria. Meu ser
volatilizou-se para a lua, transformado ele próprio em substância
lunar. E comecei a escrever como nunca dantes, liberto de métrica e
rima, algo que era eu mas que era também diferente de mim; algo que
eu tinha e de que não participava, como um fogo-fátuo a crepitar da
minha carne em agonia.
Linha
por linha, como psicografado, o poema - o meu primeiro poema -
começou a brotar de mim.
O
ar está cheio de murmúrios misteriosos...
*
* *
Há
algum tempo atrás terminei os trabalhos de correção de uma
coletânea de meus poemas, a sair proximamente. Lembrei-me do meu
primeiro poema, do primeiro poema em que me vi criando poesia,
transformando a natureza, sendo a voz que existia em mim e não era
eu. Estudei longamente a possibilidade de colocá-lo na seleção,
mas não houve jeito. Era ruim demais. Mas, curioso! senti a forma
como a querer, em vão, segredar-me imponderáveis.
Tive
saudades do tempo em que a poesia para mim era isso: a noite, com
suas vozes, a lua com seus véus, o silêncio noturno da terra a
rolar no infinito. Tive saudades de Júlio Dantas, Adelmar Tavares,
João Lyra Filho. De repente, a poesia fez-se tão exigente, o poeta
fez-se tão lúcido...
Por
que tiveste que passar, poesia inocente, poesia ruim, que eu fazia
com os olhos nos olhos da lua? Por que morreste e deixaste o poeta
calmo, firme, sóbrio dentro da noite sem mistério?
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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