Certa
vez, Noci entrou em casa a meio da manhã. Esgueirou-se, furtiva
pelos aposentos. Perguntou por Aproximado.
— A
esta hora, Dona Noci? — respondi eu. — A esta hora, a senhora bem
sabe, o Tio está a trabalhar.
A
moça se meteu na casa de banho e, sem fechar a porta, foi lançando
no chão as suas roupas. De repente, me assaltou uma espécie de
cegueira e sacudi a cabeça com receio de nunca mais voltar a ver.
Escutei, então, o barulho da água no chuveiro e fiquei imaginando o
seu corpo molhado, acariciado por suas próprias mãos.
— Estás
aí, Mwanito?
O
embaraço não me deixou responder. Ela adivinhava que eu me grudara
na porta, incapaz de espreitar, mas não tendo força para me
afastar.
— Entra.
— Como?
— Quero
que procures uma caixa que está na minha bolsa. Trouxe essa caixa
para ti.
Entrei,
a medo. Noci estava-se limpando na toalha e eu podia entrever ora o
seu peito ora as suas longas pernas. Retirei uma caixa de metal e a
ergui, tremendo. Ela entendeu o meu gesto.
— É
essa mesma. Lá dentro está dinheiro. É todo teu.
E
ela foi explicando a origem daquele pequeno tesouro. Noci fazia parte
de uma associação de mulheres que lutava contra a violênica
doméstica. Há uns meses Silvestre interrompeu uma dessas sessões e
atravessou a sala, em silêncio.
— Foi
muito estranho o que ele fez — lembrou Noci.
— Não
leve a mal — acudi eu. — Meu pai sempre teve uma ideia negativa
sobre as mulheres, peço que lhe perdoe...
— Ao
contrário, eu... aliás, todas nós ficámos muito gratas.
O
que sucedera fora o seguinte: Silvestre cruzara a sala e deixara
sobre a mesa uma caixa com dinheiro. Era a sua contribuição para a
causa daquelas mulheres.
A
associação, entretanto, fechara. Ameaças diversas semearam o medo
entre as associadas. O que Noci fazia era devolver o gesto solidário
de meu pai.
— Agora,
tu vais esconder esse taco das vistas de Aproximado, ouviste? Esse
dinheiro é teu, só teu.
— Só
meu, Dona Noci?
— Sim.
Como eu, neste momento, sou apenas tua.
A
toalha dela tombou a meus pés. E, de novo, como da primeira vez em
Jesusalém, a presença de uma mulher fez dissolver o chão. Nesse
abismo, nos lançámos, eu e ela. No final, quando os nossos corpos,
esgotados, pousaram entrelaçados no pavimento, ela passou os dedos
no meu rosto e murmurou:
— Estás
a chorar...
Neguei,
convicto. Noci parecia comovida com a minha fragilidade e, me olhando
fundo nos olhos, perguntou:
— Quem
te ensinou a amar as mulheres?
Devia
ter respondido: foi a falta de amor. Mas nenhuma palavra me acudiu.
Desarmado, vi Noci abotoando o vestido em preparos de despedida. No
último botão ela se deteve e disse:
— Quando
nos entregou a caixa de dinheiro o teu pai não sabia que, no meio
das notas, havia um bilhete com ordens.
— Ordens?
De quem?
— De
tua mãe.
Meu
pai nunca percebera mas a falecida esposa deixara um bilhete
explicando a origem e o propósito daquele dinheiro. Eram poupanças
de Dordalma e ela legava essa herança para que nada faltasse aos
seus filhos.
— Foi
a tua mãe. Foi ela quem te ensinou a amar. Dordalma esteve sempre
aqui.
E
a sua mão aberta pousou sobre o meu peito.
Mia
Couto, in Antes de nascer o mundo
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