sábado, 15 de setembro de 2018

Noci

Certa vez, Noci entrou em casa a meio da manhã. Esgueirou-se, furtiva pelos aposentos. Perguntou por Aproximado.
A esta hora, Dona Noci? — respondi eu. — A esta hora, a senhora bem sabe, o Tio está a trabalhar.
A moça se meteu na casa de banho e, sem fechar a porta, foi lançando no chão as suas roupas. De repente, me assaltou uma espécie de cegueira e sacudi a cabeça com receio de nunca mais voltar a ver. Escutei, então, o barulho da água no chuveiro e fiquei imaginando o seu corpo molhado, acariciado por suas próprias mãos.
Estás aí, Mwanito?
O embaraço não me deixou responder. Ela adivinhava que eu me grudara na porta, incapaz de espreitar, mas não tendo força para me afastar.
Entra.
Como?
Quero que procures uma caixa que está na minha bolsa. Trouxe essa caixa para ti.
Entrei, a medo. Noci estava-se limpando na toalha e eu podia entrever ora o seu peito ora as suas longas pernas. Retirei uma caixa de metal e a ergui, tremendo. Ela entendeu o meu gesto.
É essa mesma. Lá dentro está dinheiro. É todo teu.
E ela foi explicando a origem daquele pequeno tesouro. Noci fazia parte de uma associação de mulheres que lutava contra a violênica doméstica. Há uns meses Silvestre interrompeu uma dessas sessões e atravessou a sala, em silêncio.
Foi muito estranho o que ele fez — lembrou Noci.
Não leve a mal — acudi eu. — Meu pai sempre teve uma ideia negativa sobre as mulheres, peço que lhe perdoe...
Ao contrário, eu... aliás, todas nós ficámos muito gratas.
O que sucedera fora o seguinte: Silvestre cruzara a sala e deixara sobre a mesa uma caixa com dinheiro. Era a sua contribuição para a causa daquelas mulheres.
A associação, entretanto, fechara. Ameaças diversas semearam o medo entre as associadas. O que Noci fazia era devolver o gesto solidário de meu pai.
Agora, tu vais esconder esse taco das vistas de Aproximado, ouviste? Esse dinheiro é teu, só teu.
Só meu, Dona Noci?
Sim. Como eu, neste momento, sou apenas tua.
A toalha dela tombou a meus pés. E, de novo, como da primeira vez em Jesusalém, a presença de uma mulher fez dissolver o chão. Nesse abismo, nos lançámos, eu e ela. No final, quando os nossos corpos, esgotados, pousaram entrelaçados no pavimento, ela passou os dedos no meu rosto e murmurou:
Estás a chorar...
Neguei, convicto. Noci parecia comovida com a minha fragilidade e, me olhando fundo nos olhos, perguntou:
Quem te ensinou a amar as mulheres?
Devia ter respondido: foi a falta de amor. Mas nenhuma palavra me acudiu. Desarmado, vi Noci abotoando o vestido em preparos de despedida. No último botão ela se deteve e disse:
Quando nos entregou a caixa de dinheiro o teu pai não sabia que, no meio das notas, havia um bilhete com ordens.
Ordens? De quem?
De tua mãe.
Meu pai nunca percebera mas a falecida esposa deixara um bilhete explicando a origem e o propósito daquele dinheiro. Eram poupanças de Dordalma e ela legava essa herança para que nada faltasse aos seus filhos.
Foi a tua mãe. Foi ela quem te ensinou a amar. Dordalma esteve sempre aqui.
E a sua mão aberta pousou sobre o meu peito.
Mia Couto, in Antes de nascer o mundo

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