Festa
de casamento boa é aquela cujo uísque é mais velho do que a noiva.
Foi
no que ele pensou quanto entrou no salão e refletiu nos seus olhos o
brilho da garrafa de um Scotch blended envelhecido em barris
de carvalho na bandeja de um garçom que aparentava já estar pra lá
de bêbado.
Aceitou
a primeira dose. Olhou para a esposa, sorriu, ofereceu um gole, que
foi recusado, e brindou:
“Agora
sim…”
Por
que o alívio?
Escapou
da cerimônia religiosa e civil, mas não da festa, em que não
conhecia ninguém. Nem Luana, a noiva.
Era
a turma de ioga da mulher, que compareceu em peso. Ela o apresentou a
todos, de um a um. Ele esquecia os nomes na apresentação seguinte.
Nunca
fora aos eventos organizados por eles. Mas apoiava quando havia as
viagens nos primeiros fins de semana de cada mês para retiros, pois
além de ela voltar mais relaxada, deixando para ele o carro, a TV e
o apartamento livres, trazia pão de cereal integral, geleia, mel e
queijos artesanais preparados pelas freiras do convento, onde se
trancavam para praticar de sexta até domingo.
Aliás,
foi uma bênção aparecer essa ioga na vida do casal. Antes, ela
andava estressada, deprimida, enjoada dos antigos amigos e antigos
programas.
Encontrou
uma nova família e se tornou a melhor amiga de Luana, jovem com quem
passava o dia no espaço de nome indiano, que ele nunca decorou,
planejando viagens ao Oriente e a outros retiros, que eles chamam de
cursos de formação, para falar mal de outras práticas, outras
linhas, outros espaços, outros mestres, outros alunos e retiros.
O
presente que ele deu de aniversário de casamento foi um mat de ioga
novo e roxo. O de Natal, roupas confortáveis, próprias para a
prática. E no aniversário dela a assinatura da revista Yoga
Journal.
É
bom ver alguém assim empolgado. Especialmente por algo que faz bem
ao corpo e à mente.
Ela
ficou mais bonita, viva.
Acabou
a insônia.
Mais
gostosa, sim.
A
pele melhorou.
As
perninhas finas se definiram.
A
cintura ganhou forma.
Até
a bunda aumentou.
Três
vivas para esses indianos raquíticos que inventaram uma prática que
deixa as ocidentais mais tesudas e disponíveis ao esforço de outras
práticas.
Ciúmes?
Claro.
Trancava-se com uma gente mais jovem — todos lindos e saudáveis,
coloridos, vívidos, como Luana. Gente disponível que adora respirar
e acordar antes do sol, adora caminhar, praticar ao ar livre, almoçar
às 11h, jantar às 18h, dormir cedo, num ambiente sem TVs, rádios,
sinuca, carteado, mas com palestras e discussões vespertinas: os
workshops.
Ele
duvida que não rolava uma galinhagem naquelas viagens. É contra a
natureza humana tamanho celibato. Mas a esposa voltava tão leve e
refeita, e os praticantes de hataioga pareciam se importar mais com
mantras do que com cantadas, que ele não se incomodava.
Porém,
ele não sabe precisar exatamente quando tudo aquilo começou a
irritá-lo. Já tinha passado da fase de distinguir ashtanga
de iyengar, já sabia que não se fala posição, mas postura,
ou asana, e que ficar de pernas pro ar é viparita karani,
e a postura da ponte que o fascista do seu professor de Educação
Física da escola obrigava toda a classe a fazer é setu bandha
sarvangasana.
Ela
nunca insistiu que ele trocasse a sinuca com os amigos pela prática
de ioga, o que o intrigava. Mas quis que quis que ele conhecesse a
turma.
De
tanto insistir, ele foi parar no casamento cujo uísque era mais
velho do que a noiva, Luana, a quem ela tanto elogiava. E, para a sua
sorte, a cerimônia era organizada pela família do noivo, o que
garantia uma festa com todos os requintes fundamentais: uísque 25
anos, bufê, mesa de doces, banda ao vivo e cigarros, charutos,
provavelmente baseados, carreiras, drogas sintéticas, tudo o que
danifica pra valer o corpo e a mente.
Foi
então que ele finalmente conheceu a noiva, uma garota com olhos
castanhos brilhantes, um rosto redondo, cabelos loiros, corpo
perfeito, sorriso de parar uma guerra troiana, que o abraçou por
trás na hora da foto, bêbada, feliz, encostou o seu corpo no dele,
como se os dois se conhecessem há milênios, e, sem querer, o beijou
na boca, satisfeita por conhecer o marido de quem a amiga falava
tanto.
Beijo
que demorou anos para ser esquecido. Ele teve a intrigante sensação
de que a noiva o abraçou mais forte e o beijou mais intensamente do
que o cerimonial aconselhava. Ao final do cumprimento, a noiva riscou
seu dedo no pescoço dele e piscou.
Ele
passou a festa mudo, com os olhos fixos na noiva, encantado. Em toda
a sua vida, nunca encontrara uma mulher tão fascinante.
Apaixonou-se.
Buscou mais uísque. Quebrou o protocolo. Seguiu a noiva. Tentou
tirar outras fotos abraçado, sem êxito.
Tirou
a noiva para dançar. Conseguiu ficar até a metade de Eu sou
terrível, de Roberto Carlos, colado nela. Sentiu seu suor, a
respiração, os dedos dela novamente passeando pela sua nuca, sentiu
o seu hálito. Olhou seus olhos brilharem de felicidade.
Até
o sogro escandalizado os separar.
E
a mulher irritada o levar embora.
Meses
depois, surpresa.
O
telefone tocou. Luana à procura da sua mulher.
Ele
soube então que o casamento não deu certo, que o noivo a deixou
ainda na lua de mel depois de confessar que tinha outra, uma
sedentária viciada em alfajores e churrasco gaúcho.
Ele
não conseguiu se controlar e sorriu de alegria.
Enquanto
a mulher dele virou confidente da abandonada, ele planeja os próximos
passos. Por que não largar o tênis e a sinuca? Perguntou à mulher:
“No
meu caso, o que seria mais indicado, ashtanga ou iyengar?”
Marcelo
Rubens Paiva, in As verdades que
ela não diz
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