quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Luana, a noiva

Festa de casamento boa é aquela cujo uísque é mais velho do que a noiva.
Foi no que ele pensou quanto entrou no salão e refletiu nos seus olhos o brilho da garrafa de um Scotch blended envelhecido em barris de carvalho na bandeja de um garçom que aparentava já estar pra lá de bêbado.
Aceitou a primeira dose. Olhou para a esposa, sorriu, ofereceu um gole, que foi recusado, e brindou:
Agora sim…”
Por que o alívio?
Escapou da cerimônia religiosa e civil, mas não da festa, em que não conhecia ninguém. Nem Luana, a noiva.
Era a turma de ioga da mulher, que compareceu em peso. Ela o apresentou a todos, de um a um. Ele esquecia os nomes na apresentação seguinte.
Nunca fora aos eventos organizados por eles. Mas apoiava quando havia as viagens nos primeiros fins de semana de cada mês para retiros, pois além de ela voltar mais relaxada, deixando para ele o carro, a TV e o apartamento livres, trazia pão de cereal integral, geleia, mel e queijos artesanais preparados pelas freiras do convento, onde se trancavam para praticar de sexta até domingo.

Aliás, foi uma bênção aparecer essa ioga na vida do casal. Antes, ela andava estressada, deprimida, enjoada dos antigos amigos e antigos programas.
Encontrou uma nova família e se tornou a melhor amiga de Luana, jovem com quem passava o dia no espaço de nome indiano, que ele nunca decorou, planejando viagens ao Oriente e a outros retiros, que eles chamam de cursos de formação, para falar mal de outras práticas, outras linhas, outros espaços, outros mestres, outros alunos e retiros.
O presente que ele deu de aniversário de casamento foi um mat de ioga novo e roxo. O de Natal, roupas confortáveis, próprias para a prática. E no aniversário dela a assinatura da revista Yoga Journal.
É bom ver alguém assim empolgado. Especialmente por algo que faz bem ao corpo e à mente.
Ela ficou mais bonita, viva.
Acabou a insônia.
Mais gostosa, sim.
A pele melhorou.
As perninhas finas se definiram.
A cintura ganhou forma.
Até a bunda aumentou.
Três vivas para esses indianos raquíticos que inventaram uma prática que deixa as ocidentais mais tesudas e disponíveis ao esforço de outras práticas.

Ciúmes?
Claro. Trancava-se com uma gente mais jovem — todos lindos e saudáveis, coloridos, vívidos, como Luana. Gente disponível que adora respirar e acordar antes do sol, adora caminhar, praticar ao ar livre, almoçar às 11h, jantar às 18h, dormir cedo, num ambiente sem TVs, rádios, sinuca, carteado, mas com palestras e discussões vespertinas: os workshops.
Ele duvida que não rolava uma galinhagem naquelas viagens. É contra a natureza humana tamanho celibato. Mas a esposa voltava tão leve e refeita, e os praticantes de hataioga pareciam se importar mais com mantras do que com cantadas, que ele não se incomodava.

Porém, ele não sabe precisar exatamente quando tudo aquilo começou a irritá-lo. Já tinha passado da fase de distinguir ashtanga de iyengar, já sabia que não se fala posição, mas postura, ou asana, e que ficar de pernas pro ar é viparita karani, e a postura da ponte que o fascista do seu professor de Educação Física da escola obrigava toda a classe a fazer é setu bandha sarvangasana.
Ela nunca insistiu que ele trocasse a sinuca com os amigos pela prática de ioga, o que o intrigava. Mas quis que quis que ele conhecesse a turma.

De tanto insistir, ele foi parar no casamento cujo uísque era mais velho do que a noiva, Luana, a quem ela tanto elogiava. E, para a sua sorte, a cerimônia era organizada pela família do noivo, o que garantia uma festa com todos os requintes fundamentais: uísque 25 anos, bufê, mesa de doces, banda ao vivo e cigarros, charutos, provavelmente baseados, carreiras, drogas sintéticas, tudo o que danifica pra valer o corpo e a mente.

Foi então que ele finalmente conheceu a noiva, uma garota com olhos castanhos brilhantes, um rosto redondo, cabelos loiros, corpo perfeito, sorriso de parar uma guerra troiana, que o abraçou por trás na hora da foto, bêbada, feliz, encostou o seu corpo no dele, como se os dois se conhecessem há milênios, e, sem querer, o beijou na boca, satisfeita por conhecer o marido de quem a amiga falava tanto.

Beijo que demorou anos para ser esquecido. Ele teve a intrigante sensação de que a noiva o abraçou mais forte e o beijou mais intensamente do que o cerimonial aconselhava. Ao final do cumprimento, a noiva riscou seu dedo no pescoço dele e piscou.

Ele passou a festa mudo, com os olhos fixos na noiva, encantado. Em toda a sua vida, nunca encontrara uma mulher tão fascinante.
Apaixonou-se. Buscou mais uísque. Quebrou o protocolo. Seguiu a noiva. Tentou tirar outras fotos abraçado, sem êxito.
Tirou a noiva para dançar. Conseguiu ficar até a metade de Eu sou terrível, de Roberto Carlos, colado nela. Sentiu seu suor, a respiração, os dedos dela novamente passeando pela sua nuca, sentiu o seu hálito. Olhou seus olhos brilharem de felicidade.
Até o sogro escandalizado os separar.
E a mulher irritada o levar embora.

Meses depois, surpresa.
O telefone tocou. Luana à procura da sua mulher.
Ele soube então que o casamento não deu certo, que o noivo a deixou ainda na lua de mel depois de confessar que tinha outra, uma sedentária viciada em alfajores e churrasco gaúcho.
Ele não conseguiu se controlar e sorriu de alegria.
Enquanto a mulher dele virou confidente da abandonada, ele planeja os próximos passos. Por que não largar o tênis e a sinuca? Perguntou à mulher:
No meu caso, o que seria mais indicado, ashtanga ou iyengar?”
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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