— Jacaré
de papo azul, por acaso o senhor já viu um na sua vida? Azul,
azulinho ele todo, o papo, não o jacaré. Eu vi. Vi e conferi, que
ele ficou meu amigo, pode acreditar. E, eu sei, nesta beira de rio,
vez por outra costuma aparecer jacaré-de-papo-amarelo, não faz
novidade nisso. A gente está acostumada com ele, sabe lidar com o
bichinho, e cai de pau no lombo dele antes que ele ferre a gente com
uma dentada ou derrube a canoa com uma rabanada forte. Já
experimentou serrilha de rabo de jacaré no corpo, terá coisa pior
do que isso neste mundo de coisas piores? Olhe aqui o meu peito, eu
falo de jacaré porque jacaré entrou na minha vida desde menino, o
primeiro que vi levou a perna de meu pai, outro fez no meu corpo este
desenho que o senhor está admirando, pois não é tal qual uma
mulher nua costurada na pele, a marca que ele deixou? Se não morri
foi porque estava decretado que jacaré nenhum tem poder sobre este
afilhado das treze almas sabidas e entendidas, que cortam as forças
de meus inimigos. Meu pai, a perna dele não foi propriamente comida
por jacaré, ele tirou só um naco, mas o resto apodreceu e no
hospital da Januária tiveram que serrar na altura da coxa. E ainda
falam que jacaré em terra é uma pasmaceira, não sabe correr nem
brigar. Pois sim. O que aleijou meu pai estava dormindo na quentura
da praia, muito do seu natural, como se ali fosse a casa dele. Pai
cutucou ele assim com a ponta do pé, fazendo cócega na parte da
barriga que estava meio exposta, porque o desgraçado dormia meio de
banda, entende. Jacaré fez que não viu nem percebeu, continuou no
seu paradeiro, pai cutucou mais, achando graça no sono pesado
daquele bicho entregue à vontade da gente, sem defesa, porque jacaré
fora d’água… e tal e coisa. Depois de muito cutucar, o velho
lascou um pontapé no traseiro do bicho, o bicho achou que aquilo era
demais, nhoc! cravou a dentadura afiada na coxa dele. Eu estava perto
e disparei porque não sou bobo, pai veio atrás, sangrando e
xingando o jacaré, que continuou no mesmo lugar, sem dar confiança.
Quando a gente voltou para caçar ele, tinha sumido. Bem, se conto
essas coisas ao senhor é pra mostrar como a vida é feita de tira e
dá: aqui estou eu ganhando a minha caçando jacaré pra vender o
couro. A carne, eu aproveito em casa, o senhor já provou uma boa
jacarezada, feita com capricho, muita pimenta e uma branquinha de
qualidade pra santificar o total? Lhe ofereço uma se o senhor
arranchar aqui mais de uma semana, tempo de aparecer jacaré que anda
meio desanimado de descer o rio, sei lá onde se meteu. Não quer? Já
sei, o senhor embrulha o estômago só de imaginar bife de jacaré,
basta pensar no cheiro, aquele pitiú, e mais o gosto da carne dele.
Pois muito se engana, é questão de lavar, salgar, temperar direito.
Bem, não se fala mais nisso, não vou lhe oferecer um prato que o
senhor não dá o devido valor. Onde é que a gente estava na direção
da conversa? Ah, já sei, na minha vida de caçador de jacaré, que
parece feita de aventura e que talvez seja pros outros, pra mim é
escrita bem decifrada, não tem mistério, e se ficou esse desenho
gozado no meu peito foi porque eu ainda não tinha muita experiência
de jacaré, facilitei, pronto: gurugutu, mas aprendi pro resto da
vida, é baixo que um me pegue outra vez, minhas treze almas me
acompanham no serviço, me adestram na caça, sou capaz até de pegar
jacaré a laço de vaqueiro, como diz-que se faz lá no Marajó, me
contaram. Ou que nem índio, que pula do galho da árvore em cima do
jacaré, monta nele; quando jacaré mergulha, índio mergulha também,
com a mão esquerda agarrada na barriga do bicho, com a direita
aperta bem os olhos dele e com a terceira mão, que ninguém tem mas
nessa hora aparece, amarra o focinho dele com embira que levou presa
na boca… O senhor duvida? Quer dizer, isso ainda não fiz, faltou
ocasião, mas chegando a hora eu faço. Só que não gosto de judiar
dos bichos, mato eles porque o cristão tem de viver à custa de
tirar a vida do jacaré, mas no dia que eu achar um diamante, digo
até nunca pro meu ofício, por enquanto vou comendo carne, vou
vendendo couro. Pagam uma porcaria, sabe? No entanto, qualquer coisa
feita de couro de jacaré custa uma nota alta, a vida é assim,
também brinca de dá e tira. Estou destaramelando faz tempo e ainda
não cheguei ao caso do jacaré de papo azul. Pois eu conto, o senhor
fique a cômodo neste tamborete e preste atenção no meu relato.
*
* *
Como
estava lhe dizendo. De tanto viver assuntando o rio pra ver se tem
jacaré, a gente acaba tendo parte com a água, conhece o que ela
esconde, sabe o que ela quer dizer. Rio não engana, mesmo se toma
cautela de esconder no barro o que é de esconder. Mas pros outros é
que esconde, não pra quem nasceu junto dele e carece viver dele. De
começo fui pescador de peixe, como todo mundo, mas eu queria outra
coisa, queria tirar do rio o mais difícil. Minhocão, diz o senhor?
Minhocão sabe pra quem aparece. Meu negócio era com o jacaré, o
rio entendeu e me dá o jacaré que eu preciso e não abuso. Tanto
que de jeito nenhum eu caço filhote. Brigo com jacaré grande, no
poder da valentia dele, e se eu venço, fico agradado de mim; se
perco e ele foge, a vez era dele, está certo. Naquele dia foi
diferente. Jacaré botava a cabeça pra fora, eu ia pra cima dele, e
nada. Aparecia mais adiante, voltava a afundar, tornava a aparecer, a
afundar. Brincando. Isso que eu percebi depois de uma meia hora de
perseguição. Estava se divertindo comigo, não fugia, também não
se entregava. E era engraçado ver o jacaré tão despachado, tão
corredor, na correnteza tão devagar, porque o senhor sabe que este
rio aqui não tem pressa de chegar, só mais embaixo ele pega numa
disparada que o governo aproveita para fazer uma usina gigante. Aqui
o rio é lerdo, a gente sente melhor o rio, dá pra fazer amizade.
Então eu percebi que era isso que o jacaré estava querendo, fazer
amizade comigo. O senhor já reparou em boca de jacaré? Parece que
ele vive rindo de tudo, até sem motivo. Esse que eu falei ria com o
corpo inteiro, às vezes chegava à flor d’água o tempo de eu
apreciar ele todo, e rabeava com um jeito moleque, tão gozado que só
o senhor vendo. Eu doido de aproveitar e cair em cima dele, mas quem
disse? Depois de muito dançar e mergulhar, ele deu um salto e virou
de barriga pra cima, a uma distância que não dava pra pegar. Ficou
assim, boiando satisfeito da vida, que nem flor. Que nem essa flor, o
senhor sabe, grandona e redonda, boiando feito bandeja, lá no fim do
Norte, que eu nunca vi de perto, só de figura. Aí eu fui chegando
perto, chegando perto, bem de mansinho. Se ele vira de repente e me
dá uma rabanada, pensei, adeus canoa e eu sou o finado Marcindírio.
Ele não virou, cheguei bem perto e vi. Tinha o papo azul, azul deste
céu que o senhor está vendo, azul-claro, limpinho, bom de passar a
mão… Passei. O senhor não credita que passei? Pois o danado
gostou, deixando eu fazer esse agrado que a gente faz no pescoço do
gato, só que mais forte, o couro é o contrário da macieza do gato.
Não tive coragem de fazer mais nada. Ele estava tão feliz de ser
tratado assim, tão prosa de mostrar seu papo diferente, lindeza de
papo. Aí eu falei assim: “Vou m’embora, jacaré; você é livre
de morar no rio, que eu não te causo dano”. Voltei sem ofender
aquele bicho-irmão, pois pra mim ele ficou sendo um negócio
parecido com irmão, não digo filho porque era tão forte quanto eu,
se não mais, e filho da gente, por mais que cresça e apareça, é
sempre uma plantinha mimosa, sabe como é. Em casa, minha patroa
zombou de mim, achou que eu não estava regulando. Não dormi de
noite, pensando no jacaré. Dia seguinte, olha ele outra vez me
chamando pra brincar, eu disse: “Calma, jacaré, não posso passar
a vida me distraindo com você, não sou mais menino e você também
não é filhote. Todos dois têm que cuidar da vida, que a morte é
certa”. Até parece que ele entendeu, ficou com ar meio amuado,
afundou. Só apareceu muito tempo depois, de longe, experimentando a
mesma sorte de molecagem. Fiquei com pena dele: “Tá bom, eu
brinco”. Mas tem propósito um barraqueiro como eu alisando papo de
jacaré, só porque ele é azul, me diga, tem propósito? Se a gaiola
passasse e os passageiros me vissem, que é que haviam de achar? Eu
sei, talvez algum quisesse me convencer que eu devia levar o jacaré
pra terra e vender ele pra fazer figura no circo, mas o mais certo
era que todo mundo caísse de gozação em cima de mim, podiam mesmo
me levar amarrado feito doido pra dormir na cadeia, e depois… Isso
tudo passou na minha cabeça enquanto eu acarinhava o jacaré, fiquei
com vergonha que pudessem me ver naquela hora, depois fiquei com
vergonha de ter sentido vergonha, afinal que que tem o senhor se
entender com um bicho com fama de malvado e vai ver não é malvado
coisa nenhuma e pede à gente pra gostar dele? O senhor começou a
entender, quer mais um gole de café enquanto eu conto o resto?
A
fome começou a apertar aqui em casa, por causa de que não vinha
mais jacaré na descida das águas, só ficava banzando por lá o de
papo azul, que eu não tinha coração de pegar. Até parece que ele
afugentava os outros, queria reinar sozinho, virar dono e senhor do
rio. Mas tão manso e engraçado que não tinha cara de mandão.
Traiçoeiro não podia ser, se bem que a Luisona me prevenisse: “Toma
tento com esse bicho que vai te enfeitiçando, alguma ele te prepara,
não vejo nada de bom nessa claridade do rio que deu pra acontecer
ultimamente”. Luisona é a minha patroa, ela tem esse nome porque é
uma tora de mulher. Acontece que o rio vinha mesmo se lavando de sua
cor de barro carregado, e quando o sol batia na neblina do amanhecer
e a gente via a água, era uma água quase azulada, não que chegasse
a azul, parava no quase, coisa que eu nunca tinha visto antes e era
maravilha. “Mau sinal!”, repetia a Luisona, e as boquinhas dos
meninos pedindo comida não davam gosto da gente olhar. Diabo de
jacaré, pensei, se eu aproveitar uma ocasião da folia dele e chegar
de mansinho e dar nele uma machadada bem certeira, será que morre na
horinha e eu não sinto remorso porque não teve tempo de sofrer? Mas
se eu errar no golpe? Se o golpe não acertar direto no coração
dele, e eu tenho de dar outros golpes e ele me reconhece e crava em
mim aqueles olhos redondos e espantados de amigo traído, de irmão
assaltado pelo irmão? Não, eu não tinha coragem. E tinha precisão
de ter coragem. O rio cada vez azulava mais, ou eu é que enxergava
nele a miragem do papo do jacaré tornando tudo em redor uma pintura
de quadro de Nossa Senhora? Botei o machado na canoa, rezei treze
vezes a oração das minhas treze almas sabidas e entendidas e fui
vigiar o rio. O jacaré apareceu longe, veio chegando aos poucos, não
tinha pressa. Boiava e sumia, tornava a boiar e sumir, era a festa de
sempre. Cada vez mais perto da minha intenção, do meu machado.
Quando chegou bem rente, estendi o braço devagar pra lhe fazer o
carinho do costume. Deu uma virada brusca e afundou. Tinha percebido?
Apareceu mais adiante. Cheguei lá, repeti o movimento. Ele também.
Mas não tinha ar de brincadeira nova, inventada por ele. Era
desconfiança, era defesa, era também (devia ser) resolução de
evitar que eu acabasse me tornando um assassino igual aos outros,
pior que os outros. Pois aquele animal de Deus gostava de mim e eu
dele. Eu percebia isso, mas cada vez ia ficando mais enquizilado com
aquele jogo em que o jacaré era mais forte porque era melhor do que
eu. Não queria propriamente escapar de morrer, queria impedir que eu
matasse. Mas eu queria matar. Eu precisava matar. Pra sustentar meu
povo e agora também por outro fundamento, provar ao bicho das águas
que lição eu não recebia dele, minha lei é fruto de minha cabeça,
eu sei o que é necessidade e justiça. A raiva contra o jacaré ia
crescendo, agora eu queria é ver o sangue dele tingindo o rio,
desmaiando aquela azularia que encantava a cara suja e sincera das
águas. Não resisti, pulei da canoa com o machado na mão direita e
fui perseguindo o desgraçado, que fugia sempre como quem brinca de
esconder e não dá confiança a quem quer pegar. No que ele nadava e
eu também, fui sentindo uma tristeza de minha vida depender de
matar, e a raiva ficava menor, eu tinha é pena de mim, tão
precisado de fazer mal aos outros viventes, pena dos jacarés de papo
de qualquer cor, pena de tudo, e o jacaré deu um mergulho, soverti
com ele, a perseguição continuava, mas era tão triste, me via tão
humilhado diante do poder daquele bruto de tamanha simpatia e
delicadeza, eu menor do que ele, muito pior do que ele. O machado
caiu da mão, me embolei com o jacaré, resolvido a acabar com aquilo
de qualquer jeito, me expondo, desafiando ele a me cortar em postas,
mas o riso dele me doía mais do que se fossem os dentes retalhando
minha carne, que luta! seu compadre. Eu embrabecido, disposto a tudo,
ele maneiro, dentro das regras, escorregando feito sabonete,
mostrando que não queria, não precisava morder, queria é me
cansar… cansei. Tudo ficou completamente azul dentro d’água, o
próprio jacaré ficou todo azul-celeste, eu perdia as forças, me
sentia azular por dentro, uma bambeira de sono diferente me encheu
por inteiro. Então o jacaré, esticado, veio por baixo, me pegou
pelas costas e foi me empurrando pra riba, me livrando do afogamento,
me deixou estendido e mole à flor d’água, de barriga pro ar, uma
coisa frouxa, tábua. E sumiu. Sumiu de sumiço eterno até a
presente data. Não sei quanto tempo fiquei assim naquele paradeiro.
Sei que a Luisona veio nadando feito gigante e foi me puxando no rumo
da praia, dizendo: “Esperta homem!”. Espertei. Dia claro, o rio
outra vez barrento, reuni as forças, fui cair na rede aqui em casa.
Dormi dois dias e duas noites. Quando acordei, fui cuidar da vida,
arranjar outro machado, outra canoa, pois pra isso me botaram no
mundo: pra caçar jacaré.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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