Dois
versos simples de Cacaso resumem o livro que tenho nas mãos: “Minha
pátria é minha infância;/ Por isso vivo no exílio”. Leio
Destino: poesia (José Olympio), coletânea de poemas
organizada pelo crítico e poeta Ítalo Moriconi. Reúne cinco dos
mais importantes poetas brasileiros dos anos 1970: Ana Cristina
Cesar, Cacaso, Paulo Leminski, Torquato Neto e Waly Salomão.
Juntos,
eles elegem o exílio (a poesia) como destino. Poetas para quem ela
não era um gênero literário, mas um lugar de salvação. Exilam-se
não para fugir, mas para ser. Leminski, Torquato e Waly, na verdade,
vêm de antes – dos anos 1960. Os cinco têm percursos singulares.
Dividem, porém, a mesma desconfiança em relação à realidade.
Os
versos de Cacaso resumem não só uma geração (de poetas), mas um
destino (o humano). Estamos sempre deslocados – em relação às
crianças que fomos, ao futuro projetado por nossos pais, aos
esforços fervorosos da educação. Às certezas (precárias) que
aprendemos a aceitar. A vida é um desmentido.
Alguns
(muitos) sofrem com isso. Outros, em especial os poetas, transformam
o exílio em potência. Começo por Waly. No início dos anos 1990,
dividimos uma mesa de debates em São Paulo. O mediador, discreto,
preferiu se recolher à plateia. Ficamos eu e Waly diante de um
microfone. Ele foi o primeiro a falar. Estava combinado que, a
princípio, cada um falaria por dez ou quinze minutos.
Vinte,
trinta, quarenta minutos – e Waly ainda falava. Envolvido, eu
também, por sua fala, aquilo não me incomodou. Discretamente,
comecei a puxar, aos poucos, a cadeira para o lado, cedendo a ele, o
poeta, o centro da mesa. Alguns movimentos a mais, e eu já estava
fora de cena.
De
vez em quando, o doce Waly dizia: “Estou sufocando meu amigo. Já
vou terminar”. Mas não conseguia. Sem perceber, eu seguia as
instruções contidas em um de seus poemas, “Grumari”, que fecha
a antologia que agora leio. Está dito: “Entra mar adentro/ Deixa o
marulho das ondas lhe envolver/ Até apagar o blá-blá-blá humano”.
A
fala inquietante de Waly aniquilava todas as expectativas a respeito
de um debate literário – o “blá-blá-blá”. Argumentos,
réplicas, ponderações, teses, para quê? Sua fala era poesia fora
da poesia. Fora? E por que a poesia só pode estar no papel?
Escreve
Torquato, em um poema (“Hoje”) dedicado a Chico Alvim: “O que
eu menos quero pro meu dia/ polidez, boas maneiras. Por certo,/ um
Professor de Etiquetas/ não presenciou o ato em que fui concebido”.
Torquato fala por Waly, que ao fim da mesa, amoroso, cochichou em meu
ouvido: “Você me perdoe. Parece que nunca dou dentro de mim”.
Fiquei
constrangido que ainda pagassem um cachê por meu silêncio.
Besteira. Foi, talvez, porque me fiz de ouvido, que Waly se entregou
ao prazer de falar. Ouvir, muitas vezes, é mais difícil que dizer –
ler (ler bem), mais difícil que escrever. Não conheci Torquato, mas
desde cedo aprendi a admirar suas canções. Letras ou poemas? A
discussão só interessa aos inspetores e aos adestradores, não a
mim.
“Quando
eu nasci/ um anjo muito louco/ veio ler a minha mão”, escreveu
Torquato. Esse anjo louco é o leitor, que se transporta para fora de
si, ocupa o lugar do outro, se torna, um pouco, esse fascinante
estranho – o escritor. Há uma dose inevitável de loucura (de
delírio) em qualquer leitura. O leitor se apossa da palavra alheia.
Acredita que lê o outro, quando lê a si. O outro é só um caminho.
Palavras não são monumentos, são estradas.
Estive
ao lado de Ana C. na redação do mensário Beijo. Ítalo
Moriconi também estava lá. O jornal funcionava em um sobrado da
Lapa. Dividíamos o andar com um alfaiate. As reuniões atravessavam
a noite – com um fervor de noviços, votávamos tudo, do artigo de
capa às legendas das fotografias. A experiência da democracia, em
pleno regime militar, nos embriagava. O voto era (é) uma arte e
sabíamos disso.
Em
“Primeira lição”, Ana C. resume nossa estratégia. Escreve:
“Olho muito tempo o corpo de um poema/ até perder de vista o que
não seja corpo/ e sentir separado dentre os dentes/ um filete de
sangue/ nas gengivas”. Está tudo aí. A experiência intelectual
não como rito, pose, mas mergulho. O poema não suntuoso, ou
retórico, mas vivo. Uma gota de sangue escorre dos versos. Naquele
sobrado da Lapa, agarrados a uma esperança que parecia absurda,
editávamos nosso jornal como se ele fosse um poema. E era.
Cacaso
resume tudo em alguns versos. “Minha terra tem Palmares/ memória
cala-te já./ Peço licença poética/ Belém capital Pará”. Nos
anos 1970, a memória era um risco, o correto era o esquecimento.
Poetas como Cacaso entenderam que, em um país assim, à poesia não
bastava ser decorativa, ou contemplativa, ou reflexiva – ela era o
que restava. Só na poesia (“Belém capital Pará”) podíamos
inverter o jogo. Luta dolorosa que, debochando, ele chama de “Jogos
florais”.
Trazem
a assinatura de Leminski os versos que capturam todo o calor do
momento. Dizem: “Marginal é quem escreve à margem/ deixando
branca a página/ para que a paisagem passe/ e deixe tudo claro à
sua passagem”. Habitar a margem foi uma maneira de expor o grande
vazio do miolo. Por isso, a poesia se lançou, em desespero, rumo à
fronteira: em sua louca disparada, ela deixou à mostra um país
inexistente. Os poetas marginais se alienavam, alguns diziam. Acho o
contrário: se agarravam à vida.
Eles
foram obrigados, pelas circunstâncias, a ser, também, cronistas.
Daí seu interesse pelo cotidiano e sua insistência em, como quem
não quer nada, com delicadeza, quase desleixo, meter as mãos sujas
na realidade. Não para celebrá-la, mas para desmontá-la. Não
devemos ter tanta fé na vida real. Ela é, muitas vezes, só um
cenário. A poesia é o vento distante que a sacode.
Quarenta
anos depois, Ítalo Moriconi recupera as marcas dessa retirada.
Exila-se, ele também, não para fugir, mas para melhor observar. Não
que a infância seja um paraíso ou as crianças sejam anjos: porque
não são. Mas porque é lá, entre fraldas e pesadelos, que alguma
coisa se esboça.
José
Castello, in Sábados inquietos
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