sábado, 22 de setembro de 2018

Ítalo no exílio

Dois versos simples de Cacaso resumem o livro que tenho nas mãos: “Minha pátria é minha infância;/ Por isso vivo no exílio”. Leio Destino: poesia (José Olympio), coletânea de poemas organizada pelo crítico e poeta Ítalo Moriconi. Reúne cinco dos mais importantes poetas brasileiros dos anos 1970: Ana Cristina Cesar, Cacaso, Paulo Leminski, Torquato Neto e Waly Salomão.
Juntos, eles elegem o exílio (a poesia) como destino. Poetas para quem ela não era um gênero literário, mas um lugar de salvação. Exilam-se não para fugir, mas para ser. Leminski, Torquato e Waly, na verdade, vêm de antes – dos anos 1960. Os cinco têm percursos singulares. Dividem, porém, a mesma desconfiança em relação à realidade.
Os versos de Cacaso resumem não só uma geração (de poetas), mas um destino (o humano). Estamos sempre deslocados – em relação às crianças que fomos, ao futuro projetado por nossos pais, aos esforços fervorosos da educação. Às certezas (precárias) que aprendemos a aceitar. A vida é um desmentido.
Alguns (muitos) sofrem com isso. Outros, em especial os poetas, transformam o exílio em potência. Começo por Waly. No início dos anos 1990, dividimos uma mesa de debates em São Paulo. O mediador, discreto, preferiu se recolher à plateia. Ficamos eu e Waly diante de um microfone. Ele foi o primeiro a falar. Estava combinado que, a princípio, cada um falaria por dez ou quinze minutos.
Vinte, trinta, quarenta minutos – e Waly ainda falava. Envolvido, eu também, por sua fala, aquilo não me incomodou. Discretamente, comecei a puxar, aos poucos, a cadeira para o lado, cedendo a ele, o poeta, o centro da mesa. Alguns movimentos a mais, e eu já estava fora de cena.
De vez em quando, o doce Waly dizia: “Estou sufocando meu amigo. Já vou terminar”. Mas não conseguia. Sem perceber, eu seguia as instruções contidas em um de seus poemas, “Grumari”, que fecha a antologia que agora leio. Está dito: “Entra mar adentro/ Deixa o marulho das ondas lhe envolver/ Até apagar o blá-blá-blá humano”.
A fala inquietante de Waly aniquilava todas as expectativas a respeito de um debate literário – o “blá-blá-blá”. Argumentos, réplicas, ponderações, teses, para quê? Sua fala era poesia fora da poesia. Fora? E por que a poesia só pode estar no papel?
Escreve Torquato, em um poema (“Hoje”) dedicado a Chico Alvim: “O que eu menos quero pro meu dia/ polidez, boas maneiras. Por certo,/ um Professor de Etiquetas/ não presenciou o ato em que fui concebido”. Torquato fala por Waly, que ao fim da mesa, amoroso, cochichou em meu ouvido: “Você me perdoe. Parece que nunca dou dentro de mim”.
Fiquei constrangido que ainda pagassem um cachê por meu silêncio. Besteira. Foi, talvez, porque me fiz de ouvido, que Waly se entregou ao prazer de falar. Ouvir, muitas vezes, é mais difícil que dizer – ler (ler bem), mais difícil que escrever. Não conheci Torquato, mas desde cedo aprendi a admirar suas canções. Letras ou poemas? A discussão só interessa aos inspetores e aos adestradores, não a mim.
Quando eu nasci/ um anjo muito louco/ veio ler a minha mão”, escreveu Torquato. Esse anjo louco é o leitor, que se transporta para fora de si, ocupa o lugar do outro, se torna, um pouco, esse fascinante estranho – o escritor. Há uma dose inevitável de loucura (de delírio) em qualquer leitura. O leitor se apossa da palavra alheia. Acredita que lê o outro, quando lê a si. O outro é só um caminho. Palavras não são monumentos, são estradas.
Estive ao lado de Ana C. na redação do mensário Beijo. Ítalo Moriconi também estava lá. O jornal funcionava em um sobrado da Lapa. Dividíamos o andar com um alfaiate. As reuniões atravessavam a noite – com um fervor de noviços, votávamos tudo, do artigo de capa às legendas das fotografias. A experiência da democracia, em pleno regime militar, nos embriagava. O voto era (é) uma arte e sabíamos disso.
Em “Primeira lição”, Ana C. resume nossa estratégia. Escreve: “Olho muito tempo o corpo de um poema/ até perder de vista o que não seja corpo/ e sentir separado dentre os dentes/ um filete de sangue/ nas gengivas”. Está tudo aí. A experiência intelectual não como rito, pose, mas mergulho. O poema não suntuoso, ou retórico, mas vivo. Uma gota de sangue escorre dos versos. Naquele sobrado da Lapa, agarrados a uma esperança que parecia absurda, editávamos nosso jornal como se ele fosse um poema. E era.
Cacaso resume tudo em alguns versos. “Minha terra tem Palmares/ memória cala-te já./ Peço licença poética/ Belém capital Pará”. Nos anos 1970, a memória era um risco, o correto era o esquecimento. Poetas como Cacaso entenderam que, em um país assim, à poesia não bastava ser decorativa, ou contemplativa, ou reflexiva – ela era o que restava. Só na poesia (“Belém capital Pará”) podíamos inverter o jogo. Luta dolorosa que, debochando, ele chama de “Jogos florais”.
Trazem a assinatura de Leminski os versos que capturam todo o calor do momento. Dizem: “Marginal é quem escreve à margem/ deixando branca a página/ para que a paisagem passe/ e deixe tudo claro à sua passagem”. Habitar a margem foi uma maneira de expor o grande vazio do miolo. Por isso, a poesia se lançou, em desespero, rumo à fronteira: em sua louca disparada, ela deixou à mostra um país inexistente. Os poetas marginais se alienavam, alguns diziam. Acho o contrário: se agarravam à vida.
Eles foram obrigados, pelas circunstâncias, a ser, também, cronistas. Daí seu interesse pelo cotidiano e sua insistência em, como quem não quer nada, com delicadeza, quase desleixo, meter as mãos sujas na realidade. Não para celebrá-la, mas para desmontá-la. Não devemos ter tanta fé na vida real. Ela é, muitas vezes, só um cenário. A poesia é o vento distante que a sacode.
Quarenta anos depois, Ítalo Moriconi recupera as marcas dessa retirada. Exila-se, ele também, não para fugir, mas para melhor observar. Não que a infância seja um paraíso ou as crianças sejam anjos: porque não são. Mas porque é lá, entre fraldas e pesadelos, que alguma coisa se esboça.
José Castello, in Sábados inquietos

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