quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Das mil metas e uma só meta

Muitos países viu Zaratustra, e muitos povos: assim descobriu o bem e o mal de muitos povos. Zaratustra não achou maior poder na terra do que bem e mal.
Nenhum povo poderia viver sem antes avaliar; mas, querendo se manter, não pode avaliar como seu vizinho.
Muito do que esse povo considerava bom, outro considerava infâmia e escárnio: eis o que achei. Muito achei que aqui era denominado mau, e ali era coberto de honras cor de púrpura.
Jamais um vizinho compreendeu o outro: sempre sua alma se admirou da loucura e da maldade do vizinho.
Uma tábua de valores se acha suspensa sobre cada povo. Olha, é a tábua de suas superações; olha, é a voz de sua vontade de poder.
Louvável é o que ele julga difícil; o que é indispensável e difícil considera bom, e o que liberta da necessidade suprema, o raro, dificílimo — ele exalta como sagrado.
O que faz com que domine, vença e brilhe, para horror e inveja de seu vizinho: isso julga elevado, o primeiro de tudo, a medida, o sentido das coisas.
Em verdade, meu irmão, se conheces antes a necessidade, a terra, o céu e o vizinho de um povo, adivinharás a lei de suas superações e por que toma essa escada para alcançar sua esperança.
Deves sempre ser o primeiro e sobrepujar os demais: tua alma ciumenta não deve amar ninguém, exceto o amigo” — isso fazia tremer a alma de um grego: com isso ele andava pela trilha de sua grandeza.
Dizer a verdade e bem manejar arco e flecha” — isso era precioso e difícil ao mesmo tempo, para o povo do qual vem meu nome — nome que me é precioso e difícil ao mesmo tempo.
Honrar pai e mãe e lhes ser obediente até à raiz da alma” — essa foi a tábua de superação que outro povo manteve acima de si, com isso tornando-se poderoso e eterno.
Praticar a lealdade e, em nome da lealdade, empenhar a honra e o sangue até mesmo em coisas más e perigosas”: com esse ensinamento um povo se dominou, e assim se dominando tornou-se grávido e pesado de grandes esperanças.
Em verdade, os homens deram a si mesmos todo o seu bem e mal. Em verdade, eles não o tomaram e não o acharam, não lhes sobreveio como uma voz do céu.
Valores foi o homem que primeiramente pôs nas coisas, para se conservar — foi o primeiro a criar sentido para as coisas, um sentido humano! Por isso ele se chama “homem”, isto é, o estimador.
Estimar é criar: escutai isso, ó criadores! O próprio estimar é, de todas as coisas estimadas, o tesouro e a joia.
Apenas através do estimar existe valor: e sem o estimar seria oca a noz da existência. Escutai isso, ó criadores!
Mudança nos valores — isso é mudança nos criadores. Quem tem de ser um criador sempre destrói.
Criadores foram primeiramente os povos, somente depois os indivíduos; em verdade, o indivíduo mesmo é ainda a mais nova criação.
Outrora mantinham os povos uma tábua de valores acima de si. O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer criaram juntos essas tábuas.
Mais antigo é o prazer no rebanho que o prazer no Eu: e, enquanto a boa consciência se chamar rebanho, apenas a má consciência dirá: Eu.
Em verdade, o esperto Eu, o sem amor, que procura o que lhe é útil no que é útil a muitos: esse não é a origem do rebanho, mas seu declínio.
Amantes e criadores sempre foram os que criaram bem e mal. O fogo do amor arde nos nomes de todas as virtudes, e o fogo da ira.
Muitos países viu Zaratustra, e muitos povos: nenhum maior poder viu Zaratustra na terra do que as obras dos amantes: “bom” e “mau” é seu nome.
Em verdade, um monstro é o poder desse louvar e repreender. Dizei, ó irmãos, quem o subjugará? Dizei, quem lançará as cadeias sobre as mil cervizes desse animal?
Mil metas houve até agora, pois mil povos existiram. Apenas as cadeias para as mil cervizes faltam ainda, falta uma só meta. A humanidade ainda não tem meta.
Mas dizei-me, irmãos: se à humanidade ainda falta uma meta, também não falta ainda — ela mesma? —
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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