segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Couro ainda por curtir


E o camarada Quim sabia disso, tanto que foi se encostando de medo que ele entrou. Tinha poeira até na boca. Tossiu.
Levanta e veste a roupa, meu patrão Nhô Augusto, que eu tenho uma novidade meia ruim, p’ra lhe contar.
E tremeu mais, porque Nhô Augusto se erguia de um pulo e num átimo se vestia. Só depois de meter na cintura o revólver, foi que interpelou, dente em dente: — Fala tudo!
Quim Recadeiro gaguejou suas palavras poucas, e ainda pôde acrescentar: — ...Eu podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue só p’ra o dono, e pensei que o senhor podia não gostar...
Fez na regra, e feito! Chama os meus homens!
Dali a pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os bate-paus não vinham... Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O Major Consilva tinha ajustado, um e mais um, os quatro, para seus capangas, pagando bem. Não vinham, mesmo. O mais merecido, o cabeça, até mandara dizer, faltando ao respeito: — Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.
Cachorrada!... Só de pique... Onde é que eles estão?
Indo de mudados, p’ra a chácara do Major...
Major de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai!...Vou lá!
Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas to dos no lugar estão falando que o senhor não possui mais nada, que perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... — o senhor dê o perdão p’r’a minha boca que eu só falo o que é perciso — estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação... Estou lhe contando p’ra mo do de o senhor não querer facilitar. Carece de achar outros companheiros bons, p’ra o senhor não ir sozinho... Eu, não, porque sou medroso. Eu cá pouco presto...
Mas, se o senhor mandar, também vou junto.
Mas Nhô Augusto se mordia, já no meio da sua missa, vermelho e feroz. Montou e galopou, teso para trás, rei na sela, enquanto o Quim Recadeiro ia lá dentro, caçar um gole d’água para beber. Assim.
Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar fazendo umas férias na vida: viagem, mudança, ou qualquer coisa ensossa, para esperar o cumprimento do ditado: “Cada um tem seus seis meses...”
Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar o gasto, desembesta até ao fim. E, desse jeito, achou que não era hora para ponderados pensamentos.
Nele, mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma ideia resolveu por si: que antes de ir à Mombuca, para matar o Ovídio e a Dionóra, precisava de cair com o Major Consilva e os capangas. Se não, se deixasse rasto por acertar, perdia a força. E foi.
Cresceu poeira, de peneira. A estrada ficou reta, cheia de gente com cautela. Chegou à chácara do Major.
Mas nem descavalgou, sem tempo. Do tope da escada, o dono da casa foi falando alto, risonho de ruim:
Tempo do bem-bom se acabou, cachorro de Estêves!...
O cavalo de Nhô Augusto obedeceu para diante; as ferraduras tiniram e deram fogo no lajedo; e o cavaleiro, em pé nos estribos, trouxe a taca no ar, querendo a figura do velho.
Mas o Major piscou, apenas, e encolheu a cabeça, porque mais não era preciso, e os capangas pulavam de cada beirada, e eram só pernas e braços.
Frecha, povo! Desmancha!
Já os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de matrinchãs na rede.
Pauladas na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augusto desdeu o corpo e caiu. Ainda se ajoelhou em terra, querendo firmar-se nas mãos, mas isso só lhe serviu para poder ver as caras horríveis dos seus próprios bate-paus, e, no meio deles, o capiauzinho mongo que amava a mulher-à toa Sariema.
E Nhô Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que capiau de testa peluda, com o cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem capaz de guardar o passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar da rua outras raivas pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia de tirar vingança.
Mas, aí, pachorrenta e cuspida, ressoou a voz do Major: — Arrastem p’ra longe, para fora das minhas terras... Marquem a ferro, depois matem.
Nhô Augusto se alteou e estendeu o braço direito, agarrando o ar com os cinco dedos: — Cá p’ra perto, carrasco!... Só mesmo assim desse jeito, p’ra sojigar Nhô Augusto Estêves!
E, seguro por mãos e pés, torcido aos pulsos dos capangas, urrava e berrava, e estrebuchava tanto, que a roupa se estraçalhava, e o corpo parecia querer partir-se em dois, pela metade da barriga. Desprendeu-se, por uma vez. Mas outros dos homens desceram os porretes. Nhô Augusto ficou estendido, de-bruços, com a cara encostada no chão.
Traz água fria, companheiro!
O capiauzinho da testa peluda cantou, mal-entoado: Sou como a ema, Que tem penas e não voa...
Os outros começaram a ficar de cócoras.
Mas, quando Nhô Augusto estremeceu e tornou a solevar a cabeça, o Major, lá da varanda, apertando muito os olhos, para espiar, e se abanando com o chapéu, tirou ladainha: — Não tem mais nenhum Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas, minha gente?!...
E os cacundeiros, em coro:
Não tem não! Tem mais não!...
Puxaram e arrastaram Nhô Augusto, pelo atalho do rancho do Barranco, que ficou sendo um caminho de pragas e judiação.
E, quando chegaram ao rancho do Barranco, ao fim de légua, o Nhô Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue. Empurraram-no para o chão, e ele nem se moveu.
É aqui mesmo, companheiros. Depois, é só jogar lá para baixo, p’ra nem a alma se salvar...
Os jagunços veteranos da chácara do Major Consilva acenderam seus cigarros, com descanso, mal interessados na execução. Mas os quatro que tinham sido bate-paus de Nhô Augusto mostravam maior entusiasmo, enquanto o capiauzinho sem testa, diligente e contente, ia ajuntar lenha para fazer fogo.
E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do Major — que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência —, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto, medonhos.
Segura!
Mas já ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço. Era uma altura, O corpo rolou, lá em baixo, nas moitas, se sumindo.
Por onde é que a gente passa, p’ra poder ir ver se ele morreu?
Mas um dos capangas mais velhos disse melhor: — Arma uma cruz aqui mesmo, Orósio, para de noite ele não vir puxar teus pés...
E deram as costas, regressando, sob um sol mais próximo e maior.
Guimarães Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga

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