-
É minha! disse eu comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e
confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a ideia entranhando
no espírito, não à força de martelo, mas de verruma, que é mais
insinuativa.
-
É minha! dizia eu ao chegar à porta de casa.
Mas
aí, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se
lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessórios,
luziu-me no chão uma coisa redonda e amarela.
Abaixei-me;
era uma moeda de ouro, uma meia dobra.
-
É minha! repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso.
Nessa
noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o
caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que me
perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não herdara
nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era minha;
era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse
pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher
e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria
restituir a moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê-lo por
intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei um carta ao chefe
de polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a
seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do verdadeiro dono.
Mandei
a carta e almocei tranquilo, posso até dizer que jubiloso. Minha
consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada,
sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma janela
que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro,
e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! não vos
digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras circunstâncias,
o meu ato era bonito, porque exprimia um justo escrúpulo, um
sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama
interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me
dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta.
-
Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro,
é balsâmico, é uma transpiração dos eternos jardins. Queres ver
o que fizeste, Cubas?
E
a boa dama sacou um espelho e abriu-mo diante dos olhos. Vi,
claramente vista, a meia dobra da véspera, redonda, brilhante,
nítida, multiplicando-se por si mesma, - ser dez - depois trinta -
depois quinhentas, - exprimindo assim o benefício que me daria na
vida e na morte o simples ato da restituição. E eu espraiava todo o
meu ser na contemplação daquele ato, revia-me nele, achava-me bom,
talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um
pouquinho mais.
Assim,
eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das
janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é
abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a
consciência. Talvez não entendas o que ai fica; talvez queiras uma
coisa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho
misterioso. Pois toma lá o embrulho misterioso.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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