Conheceram-se,
namoraram, amaram, casaram, tiveram filhos, desamaram, separaram-se,
depois de tanto verbo conjugado em comum. Ele sumiu por aí, no
anonimato sem responsabilidades. Ela ficou criando a trinca sem pai.
Sem notícia um do outro, tempo passando, acontecimentos acontecendo,
vida no corre-corre. Ela até nem se lembrava mais de que fora
casada. Eis que o marido reaparece na lembrança, quando uma filha
lhe diz:
— Mãe,
o pai está no hospital.
Que
pai? Não sabia de pai nenhum, o seu morrera há tanto tempo, depois
de dar tanto trabalho. (Descansa em paz, deixando a família
descansada.) Há outros pais vivos por aí? De quem?
— O
meu, uai.
Ah,
sim. O pai dessa moça que está à sua frente, essa moça que é sua
filha, e que antigamente tivera um pai. Um pai que fora seu marido, e
que nunca mais aparecera, jogando sobre suas costas a obrigação de
criar e educar os filhos. Como as coisas emergem de um poço escuro,
de repente! Pois não é que o ex-marido voltava à tona, com seus
sinais particulares, seu modo de falar, seu jeito de ser e viver? Tão
antigo, tão inexistente — mas ali.
Ela
parecia não dar mais atenção ao que a filha ia dizendo.
— Escutou
o que eu disse?
— Hem?
— O
pai está no hospital.
— Que
é que ele foi fazer lá? Vender seguro de vida aos doentes? (Agora
se recordava de que ele fora corretor de seguros.)
— Está
doente.
— Como
você soube?
— Mandou
me avisar. Não tem ninguém com ele, só a gente do hospital. Então
estava sozinho, depois de muitos anos, e se lembrava da filha para
ter companhia no hospital. Não chegou a ter pena. Estavam tão
distanciados os dois, que era como se soubesse que um japonês em
Yamagata sofria de dor de dentes. A filha esperava um comentário,
uma reação.
— Vai
lá, querida.
Mais
do que isso não poderia dizer, porque não havia nada mais a
exprimir. Amores fanados não reverdecem, quando a vida caprichou em
esmagá-los bem. Se alguma coisa tivesse ficado exposta à luz, se um
gesto dele, mínimo que fosse, ao longo de tanto tempo, alimentasse
um resto possível de sentimento, ela agora teria pena. Mas pena de
quê? de quem? se nem de si mesma sentia mais pena, conformada que
estava com o irremediável das coisas, e refugiada, também, no
pequeno mundo que se construíra e em que convivia com artistas
obscuros do passado, através de estudos e pesquisas que eram uma
fonte de prazer, compensador de alegrias que não tivera no
casamento?
— Vai,
minha filha, e vê o que ele precisa.
A
filha foi e voltou contando que ele estava mal, parece que dessa não
escapava. Como de fato não escapou. Sem pessoa alguma para cuidar do
enterro, nem bens que pudessem custear a despesa, quem tomaria
providências?
Então
a ex-esposa, pessoa decidida, acostumada a fazer na hora certa o que
é necessário fazer, decidiu presentear o ex-marido com o enterro
decente que ele não tinha merecido, e que a ela custaria uma nota
desarrumadora do seu orçamento modesto. Procurou a funerária, disse
que pagaria tudo.
O
empregado perguntou-lhe, entre xereta e reticente:
— A
senhora… era companheira do falecido?
— Companheira?
Sou viúva dele!
— Perdão,
mas o falecido, quando se internou no hospital, declarou que era
viúvo. A senhora quer ver? Vamos lá na Secretaria.
— Pois
eu sou a viúva do viúvo, entende? E não estou fazendo nada para
ficar com a herança dele, que não deixou um tostão de seu, além
de me matar no papel. E vamos com esse serviço depressa, que eu
preciso cuidar da minha vida de viúva-desquitada há muito tempo, tá
bom?
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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