Em cada viagem de volta Geminiano trazia
uma ou duas pessoas na carroça, os passageiros saltavam no largo ou
numa rua e ficavam parados numa esquina ou na sombra do coreto, muito
interessados nas pessoas que passassem, mas apenas para olhar; não
falavam com ninguém, não cumprimentavam nem gostavam de responder
cumprimento, se respondiam era de má vontade, para dentro. Até
padre Prudente, que uma vez passou por dois desses homens e
ingenuamente olhou-os esperando uma demonstração qualquer de
respeito, recebeu de volta um olhar fixo, que não soube precisar se
era de atrevimento ou de espanto.
As crianças sofriam muitas provocações
desses homens. Um certo Mandovi, menino que vendia cigarros numa
caixinha de sapatos, era uma vítima constante. Da primeira vez,
tomando alguns daqueles homens por possíveis compradores, ele
chegou-se e ofereceu a mercadoria. Um dos homens despachou-o com a
mão, mas outro achou de investigar o que havia na caixa; só que em
vez de perguntar, ou pedir para ver, como fazia toda pessoa nova na
cidade, o homem foi destampando a caixa e soltando a tampa no chão
na maior sem-cerimônia. Mandovi já não gostou, e para mostrar que
não tinha gostado puxou a caixa do alcance do homem e abaixou-se
para recuperar a tampa, ao mesmo tempo pensando se continuaria dando
atenção àquela gente ou se a cortaria de vez. Quando se ergueu,
passando a tampa na roupa para limpar a terra, sentiu-se agarrado
pela gola, enquanto outra mão tomava a caixa.
Que poderia ele fazer, tão pequeno e
magrinho, contra dois homens enormes, de barba na cara, se bem que um
deles parecesse não participar da curiosidade do outro?
O homem segurou a caixa com a mão
esquerda, ajudando com o corpo, com a direita retirou uma rodilha de
cigarros, exatamente a maior.
— Isso o que é? — perguntou, rodando
a rodilha na mão como se não soubesse, e sem olhar para o menino.
Mandovi teve vontade de responder que era
pé de moleque, ou chouriço-pra-fazer-feitiço, mas procurou
paciência e explicou direito. Mas o homem não estava interessado na
resposta, e tentava arrancar com os dentes a linha que amarrava a
rodilha.
— Não tira que vai espandongar tudo —
avisou Mandovi já tarde. O homem já tinha arrebentado a linha de um
lado, os cigarros aproveitaram para se livrar do arrocho, se abriram
em flor, caíram por todos os lados em volta da mão do homem e se
espalharam no chão.
— Agora paga. Desmanchou, paga —
disse Mandovi, acreditando estar aplicando uma lei lógica que
qualquer pessoa entenderia. Mas o homem soltou uma gargalhada de
jogar o corpo para trás, e nisso largou a caixa, que caiu de lado e
derramou as outras rodilhas no chão.
Mandovi esperou o homem acabar de achar
graça; mas vendo que isso ia demorar um pouco, aproveitou o tempo
para apanhar as rodilhas inteiras, deixando os cigarros soltos, que
no seu entender não lhe pertenciam mais. Ainda rindo, o homem saiu
andando com passos de bêbedo, pisando em cigarros, machucando
rodilhas, e propositalmente ou não deu uma bicanca na caixa. Mandovi
parou com as duas mãozinhas no chão, olhou e viu dois homens de
muitas pernas, andaimes, vigas móveis tremendo, indo embora.
Sem pensar no que fazia, ele apanhou umas
coisas no chão, pedras, paus, sabugos e foi jogando a esmo, com
raiva, os baques fofos, os gritos, os homens correndo, as pedras não
alcançando mais.
Quando chegou em casa, Mandovi pensou que
alguém tivesse adoecido de repente, ou que o pai tivesse se
machucado na oficina: muita gente na varanda conversando,
perguntando, dando opinião. Mandovi já entrou assustado, a mãe
correu para ele, abraçou-o:
— Com efeito, meu filho! Como você foi
fazer uma coisa dessas?
O pai separou-se de um grupo que
conversava diante da janela e falou enérgico:
— Mandovi, venha na oficina comigo.
Mandovi deixou a caixa de cigarros em
cima da mesa, olhou para a mãe, não tomou conhecimento das outras
pessoas. O pai chamou de novo, ele acompanhou-o pela escadinha do
quintal.
Ninguém quis sair imediatamente; se seu
Apolinário ia castigar o filho, eles queriam pelo menos ouvir os
gritos. A mãe foi para a janela da frente para não ouvir, desejando
que o marido não exagerasse no castigo, afinal de contas qual o
menino que não faz uma travessura de vez em quando? Uma vizinha
acompanhou-a para consolar, ela não escutava as palavras de consolo,
estava de atenção voltada para a oficina ali ao lado da casa, não
demoraria muito e Mandovi estaria gritando debaixo das chicotadas.
Apolinário quando batia não alisava nem escolhia lugar, e ainda
tinha a mania de bater com aquela tira de couro tão grossa e tão
dura.
A vizinha falava, a mãe ia ficando
impaciente, os gritos não vinham, alguma coisa fora do comum devia
estar acontecendo.
Foi um susto para a mãe quando Mandovi
apareceu ao lado dela já explicando por que tinha voltado com quase
todo o cigarro.
— Você disse a seu pai? — ela
perguntou depois de ouvir as razões.
— Disse sim senhora.
— E ele não fez nada?
— Não senhora. Disse que eu fiz o que
devia.
A alegria da mãe nasceu e morreu ali
mesmo na janela. Morreu quando ela compreendeu o motivo de tanta
visita fora de hora: aquela gente esperava uma reação dos homens, e
estava ali para assistir. Os homens não iam levar pedradas na rua e
voltar mansinhos para casa. Apolinário dando razão a Mandovi
agravou a situação, porque sabendo que o menino não tinha sido
castigado, os homens iam querer eles mesmos aplicar o castigo, e
sabe-se lá de que maneira.
Pelo resto do dia a casa esteve cheia de
gente, uns se cansavam e iam embora, outros iam chegando de fresco,
todo mundo se apertando na varanda pequena como para beijar o divino
em pouso de folia, aquela zoada, gente se espremendo contra os
móveis, ameaçando derrubar o pote de água que descansava num cepo
alto num canto, a toda hora era preciso alguém protegê-lo do
balanço, mas um pouco de água sempre derramava, fazendo lama no
chão; gente pisando os pés uns de outros, pedindo desculpa e
pisando de novo. Uma hora lá seu Apolinário perdeu a paciência e
resolveu acabar com a furupa, bateu palma para chamar atenção e
mandou que esquipasse todo mundo, disse que ali não tinha morrido
ninguém por enquanto, graças a Deus, que fossem sacudir o corpo em
algum serviçal como ele estava fazendo desde muito cedo — e foi
pegando os chapéus que estavam nos cabides, em cima da mesa, no
parapeito das janelas, na mão dos donos e pondo na cabeça das
pessoas, às vezes o chapéu de um na cabeça de outro, e empurrando
gente pelo corredor afora, cercando com os braços os que ameaçavam
voltar.
A mulher achou boa essa providência, mas
ficou envergonhada porque no meio do pessoal estavam umas amigas dela
que não acharam jeito de ficar depois do que Apolinário tinha
acabado de dizer.
— Conheceram, papudos! Agora você pode
fazer a janta em paz — disse Apolinário à mulher. — Se precisar
de mim, estou na oficina. E outra coisa, Serena. Convém não deixar
o Mandovi sair mais hoje.
Dona Serena gostava daquele jeito
despachado e confiante do marido, mas achava que ele estava sendo
despreocupado demais em hora de tanta ameaça. Pensando e pensando
nisso, ela se distraiu na cozinha e cometeu uma série de deslizes —
queimou a mão numa panela, deixou o arroz esturrar, esqueceu a
chaleira fervendo até a água transbordar e quase apagar o fogo. Ela
não esquecia os homens da tapera e os males que eles pudessem fazer.
Quando Apolinário veio jantar, ela disse
com muito jeito que seria melhor ele não sair de casa à noite.
— Por que agora? Eu não estou de
resguardo.
— Eu morro de medo por causa disso que
Mandovi fez.
— Tem nada não. O que ele fez foi bem
feito.
— Meu medo é que os homens queiram
tirar vingança.
— Tiram não. Se vierem arrastando
mala, saem com ela espandongada.
Em vez de se acalmar com a bravata do
marido, dona Serena mais se alarmou:
— Olhe lá, Apolinário. Tenho muito
medo.
— Não tem motivo. Quem tem razão tem
salvação.
— Tomara que seja.
Mas Apolinário acabou fazendo o
sacrifício de não dar a sua voltinha de toda noite. Ao escurecer
foi à oficina, apanhou um malho dos mais leves e trouxe para casa, e
enquanto Mandovi puxava água do poço para encher as vasilhas, e
dona Serena grosava palha para cigarros, ele ficou um pouco na janela
fumando e respondendo os cumprimentos dos passantes; depois foi para
a varanda e deitou-se enganchado na rede, com o malho ao alcance da
mão. Naquela noite Mandovi ficou proibido de brincar no largo.
— Mas, mãe… que mal faz?
— Convém não. Falha hoje. Brinquedo
não é serviço urgente.
— Se eles vierem, eu corro. Ninguém me
pega na corrida.
— Por mim não vai. Só se seu pai
deixar.
Chamado a opinar, Apolinário apoiou a
mulher:
— Vai não. Sua mãe já disse, está
resolvido. Pegue seu livro, vá estudar.
Não tinha jeito. Aquela noite estava
mesmo perdida para Mandovi.
José J. Veiga, in A noite dos
ruminantes
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