quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Tem caveira de burro!

Negócios infelizes, empreendimentos desastrados, planos que a realização desmoronou, numa sequência obstinada de insucessos, diz-se que há caveira de burro. Por mais precauções, exames prévios, previsões cautelosas, a empresa, inexplicavelmente, falha. Com uma nova mobilização de recursos, técnicas, os auxílios mais variados e próprios, positiva-se apenas uma nova falência, injustificada e misteriosa. Tem caveira de burro enterrada...
O burro, entretanto, prestar-se-ia a ser um padroeiro excelente. É teimoso, resistente, inesgotável. Alimenta-se do que encontra, inclusive cardos e papel. Enfrenta a fome, a sede, o excesso de cargas transportadas, estoicamente. O jumento é credor da gratidão nacional pela sua secular colaboração resignada e permanente. O Padre Antônio Vieira, de Iguatu, Ceará, dedicou-lhe um volume documentadamente exaltador, O jumento, nosso irmão (Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S/A, 1964). Não há criatura mais simpática, modesta e generosa. É um dos animais de profunda inteligência, raciocínio arguto, prodigioso instinto nas fronteiras da genialidade.
O Folclore, consagrador e justo para outras espécies, apresenta o burro como um modelo rústico de estupidez, bestialidade incurável, obstinação irracional. Quase todos os animais têm sido representados como mascotes. Bons agouros. Amuletos contra o mau-olhado. Menos o burro. Não aparece nas pulseiras, colares, brincos, balangandãs. Maltratado, injustiçado na consideração dos homens, escravo sem direitos, alimentado a chicote e pau, deita-se apenas para morrer. Nenhuma assistência, afago, compreensão por parte do dono, perpetuamente ávido do seu esforço. Não há bom tempo para o burro-jumento. Que pode anunciar de sucesso, vitória e êxito?
Sua caveira recordará uma existência funcionalmente desgraçada, sem alegrias e compensações naturais.
Caveira de burro testifica esse cortejo infeliz. Não deverá, evidentemente, proteger os júbilos da satisfação material. Anuncia miséria.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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