quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O segredo na cozinha

Durante esses longos milênios, dia sim, dia não as pessoas ficavam cara a cara com a invenção mais importante na história da produção de energia – e não conseguiam perceber isso. Essa invenção as encarava cada vez que uma dona de casa ou um servo colocava no fogão uma chaleira para ferver água para o chá ou uma panela cheia de batatas. No minuto em que a água fervia, a tampa da chaleira ou da panela saltava. O calor estava sendo convertido em movimento. Mas tampas de panelas saltando eram uma perturbação, sobretudo se alguém esquecia a panela no fogo e a água transbordava.
Um avanço parcial na conversão do calor em movimento ocorreu após a invenção da pólvora na China do século IX. No início, a ideia de usar pólvora para propelir projéteis era tão antinatural que durante séculos a substância foi usada primordialmente para produzir fogos de artifício. Mas – talvez depois que algum especialista em fogos de artifício moeu pólvora em um morteiro e esta atirou longe o pilão – as armas acabaram por surgir. Cerca de 600 anos se passaram desde a invenção da pólvora até o desenvolvimento de uma artilharia eficaz.
Mesmo então, a ideia de converter calor em movimento continuou sendo tão antinatural que outros três séculos se passaram antes de as pessoas inventarem a próxima máquina que usava calor para mover as coisas. A nova tecnologia nasceu nas minas de carvão da Grã-Bretanha. À medida que a população britânica crescia, florestas eram derrubadas para abastecer a economia crescente e abrir caminho para casas e campos. A Grã-Bretanha enfrentava uma escassez cada vez maior de lenha. Muitas jazidas de carvão estavam situadas em áreas alagadas, e a inundação impedia os mineiros de acessarem os estratos mais baixos das minas. Era um problema à procura de uma solução. Por volta de 1700, um estranho ruído começou a reverberar em torno dos poços de mineração britânicos. Esse ruído – prenúncio da Revolução Industrial – era sutil no início, mas ficou cada vez mais forte a cada década que se passava, até que envolveu o mundo inteiro em uma cacofonia ensurdecedora. Vinha de um motor a vapor.
Há muitos tipos de motores a vapor, mas todos eles têm um mesmo princípio. Queima-se algum tipo de combustível, como carvão, e usa-se o calor resultante para ferver água, produzindo vapor. À medida que o vapor se expande, empurra um pistão. O pistão se move, e qualquer coisa que esteja conectada ao pistão se move com ele. O calor foi convertido em movimento! Nas minas de carvão britânicas do século XVIII, o pistão era conectado a uma bomba que extraía água do fundo dos poços de mineração. Os primeiros motores eram incrivelmente ineficazes. Era preciso queimar uma enorme quantidade de carvão para bombear um volume minúsculo de água. Mas, nas minas, o carvão era abundante e estava ao alcance da mão, e por isso ninguém se importava.
Nas décadas que se seguiram, os empreendedores britânicos melhoraram a eficácia do motor a vapor, o tiraram dos poços de mineração e o conectaram a teares e descaroçadoras de algodão. Isso revolucionou a produção têxtil, tornando possível produzir quantidades cada vez maiores de tecidos baratos. Em um piscar de olhos, a Grã-Bretanha se tornou a oficina do mundo. Mas, o que é ainda mais significativo, tirar o motor a vapor das minas rompeu uma importante barreira psicológica. Se era possível queimar carvão para movimentar teares, por que não usar o mesmo método para movimentar outras coisas, como veículos?
Em 1825, um engenheiro britânico conectou um motor a vapor a um trem com vagões de minério cheios de carvão. O motor arrastou os vagões por uma linha de ferro por cerca de 20 quilômetros, da mina até o porto mais próximo. Essa foi a primeira locomotiva a vapor da história. Claramente, se o vapor podia ser usado para transportar carvão, por que não outros produtos? E por que não até mesmo pessoas? Em 15 de setembro de 1830, a primeira ferrovia comercial foi inaugurada, conectando Liverpool a Manchester. Os trens se moviam com o mesmo motor a vapor antes usado para bombear água e mover teares. Meros 20 anos depois, a Grã-Bretanha tinha dezenas de milhares de quilômetros de ferrovia.
Daí em diante, as pessoas ficaram obcecadas com a ideia de que máquinas e motores pudessem ser usados para converter um tipo de energia em outro. Qualquer tipo de energia, em qualquer lugar do mundo, poderia ser usado para qualquer necessidade que tivéssemos, contanto que inventássemos a máquina certa. Por exemplo, quando os físicos perceberam que uma quantidade imensa de energia está armazenada no interior dos átomos, eles imediatamente começaram a pensar em como essa energia poderia ser liberada e usada para gerar eletricidade, abastecer submarinos e aniquilar cidades. Seiscentos anos se passaram do momento em que os alquimistas chineses descobriram a pólvora até o momento em que um canhão turco pulverizou os muros de Constantinopla. Apenas 40 anos se passaram do momento em que Einstein determinou que qualquer tipo de massa pode ser convertido em energia – é isso o que E = mc2 significa – até o momento em que as bombas atômicas destruíram Hiroshima e Nagasaki e usinas de energia nuclear floresceram em todo o mundo.
Outra descoberta crucial foi o motor de combustão interna, que levou pouco mais de uma geração para revolucionar o transporte humano e transformar o petróleo em poder político líquido. O petróleo era conhecido há milhares de anos e usado para impermeabilizar telhados e lubrificar eixos. Mas até um século atrás ninguém pensava que fosse útil para muito mais do que isso. A ideia de derramar sangue em nome do petróleo teria parecido ridícula. Era possível travar uma guerra por terra, ouro, pimenta ou escravos, não por petróleo.
A trajetória da eletricidade foi ainda mais impressionante. Há dois séculos, a eletricidade não exercia papel algum na economia e, quando muito, era usada para experimentos científicos misteriosos e truques de mágica baratos. Uma série de invenções a transformaram em nosso gênio da lâmpada universal. Nós estalamos os dedos e ela imprime livros e costura roupas, mantém nossos legumes frescos e nosso sorvete congelado, cozinha nossos jantares e executa nossos criminosos, registra nossos pensamentos e nossos sorrisos, ilumina nossas noites e nos entretém com incontáveis programas de televisão. Poucos de nós entendemos como a eletricidade faz todas essas coisas, mas um número ainda menor pode imaginar a vida sem ela.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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