terça-feira, 14 de agosto de 2018

Leitores de Porto Alegre e uma bailarina no ar

Minha recente temporada gaúcha começou em São Paulo, na Casa de Francisca, onde Arrigo Barnabé interpretou várias canções de Lupicínio Rodrigues.
Com sua voz de crocodilo, rouca e ironicamente romântica, Arrigo interpretou canções de amor e angústia, canções de dor com humor e sarcasmo do grande compositor gaúcho.
Caixa de ódio, o nome desse show imperdível, diz muito sobre Lupicínio e suas musas fisgadas em dancings e bailes de outrora em Porto Alegre, uma cidade que me atrai cada vez mais, apesar do frio, do chuvisco incessante, do vento gelado que alfineta até os ossos e nos dá uma sensação de que ali o inverno é uma estação bem definida, diferente do inverno paulistano: temperamental, volúvel, poluído.
As águas do Guaíba, cobertas pela névoa; mas em algum momento vi manchas marrons dos rios que formam o delta. E ilhas ao longe. Depois andei por ruas mal iluminadas do centro, quase desertas na noite invernal, e me lembrei de um romance fino e perturbador: Os ratos. Até os pipoqueiros e estivadores ouviram falar da obra de Dyonélio Machado; a moça que me vendeu um guarda-chuva já havia lido também O louco do Cati, e quando passei em frente ao edifício da antiga Globo, me lembrei dos livros publicados por essa editora: clássicos estrangeiros traduzidos por grandes poetas, romancistas e críticos literários.
Esses livros de capa amarela atravessavam o Brasil e chegavam às livrarias da rua Henrique Martins, no centro de Manaus; depois entravam no quarto que eu dividia com um dos meus tios. “Os livros que vêm do Sul”, dizia meu tio, folheando e farejando o objeto cultuado, que à noite ele lia no quintal, deitado numa rede iluminada por um candeeiro enganchado no galho de um jambeiro.
Os livros que vêm do Sul: nunca esqueci essa frase nem a visão do leitor ao relento.
Em Porto Alegre me encontrei com muitos jovens interessados por literatura. Nada de autoajuda, nem de cabanas, crepúsculos e congêneres. Dizem que esse interesse é por causa do inverno, da reclusão constrangida pelo frio prolongado. Será?
Há bons leitores em todos os climas e latitudes, a razão mais plausível do interesse pela leitura é a qualidade do ensino no Rio Grande do Sul.
Disse isso ao meu amigo gaúcho Serguei Barzican, que me convidou para assistir a um encontro literário em que ele seria o mediador de um debate sobre a tradução de Finnegans Wake, a obra de James Joyce que foi lida na íntegra por um punhado de tradutores e críticos.
Uma noite de domingo em homenagem à literatura de vanguarda”, disse Serguei, conduzindo o carro por bairros que eu desconhecia.
Numa rua escura paramos diante de um pequeno galpão iluminado: uma fábrica antiga que se tornara um lugar de encontros literários.
Foi uma noite inesquecível para mim, e tensa para Serguei, porque não é mole mediar uma mesa sobre o Finnegans Wake.
Ouvi os comentários dos dois debatedores sobre a obra de Joyce, depois ouvi com prazer trechos do Finnegans Wake, extasiado com a melodia do pesadelo noturno e cíclico, com a loucura inventiva do irlandês genial. Quando acordei, quer dizer, quando abri os olhos, vi um corpo navegando no espaço, não era uma visão alucinante, e sim uma bailarina, presa na cintura por um cabo enganchado numa viga da estrutura metálica. Nesse momento a leitura foi interrompida porque os debatedores discordavam sobre uma ou duas palavras da tradução. Um deles dizia que o mais correto era: “Finda domingo”. O outro afirmava que o neologismo “Segundalba” era mais apropriado, mais fiel ao original. De qualquer modo, entendi que o domingo declinava e que a segunda-feira despontava no pesadelo de uma personagem ou do leitor.
Os dois gaúchos discutiam com fervor e, quando o fervor tomou ares de uma exaltação ríspida, o pobre Serguei Barzican entendeu que o seu papel de mediador era inútil. Serguei olhava para o céu e via o corpo da bailarina morena que ia e vinha com movimentos de artista circense, o rosto da moça parecia alheio às duas vozes que agora duelavam em inglês, um inglês áspero, com algo do sotaque gaúcho. Mas era o rosto silencioso da bailarina que falava mais alto, o corpo belíssimo flutuando livremente no espaço fora do tempo. E que braços e pernas voadores, tchê! Quanto equilíbrio e harmonia e perfeição!
Aos poucos a plateia foi se esquecendo de “Finda domingo” e “Segundalba”, eu mesmo abstraí essas palavras beligerantes e me entreguei à magia corporal da bailarina no ar, agradecendo a James Joyce e a seus dois leitores por essa visão sublime na noite gelada de um domingo gaúcho que chegava ao fim.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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