terça-feira, 14 de agosto de 2018

De cor e salteado

Karina foi aprendendo de cor e salteado as histórias de Antônio.
Foi não foi, chegava até a florear umas passagens: “Não foi assim que aconteceu, Antônio, tá lembrado não que foi de outro modo?”, vá lá entender por que mulher gosta tanto de corrigir o homem.
Com o passar do tempo os dois foram usando cada vez menos pontos de interrogação em suas conversas e, por falta de ainda ter o que explicar, gastaram todos os entre parênteses. Não faziam economia de adjetivo um com o outro quando estavam sozinhos, à noite, principalmente.
Se ela queria, ele inventava, se ele inventava, ela queria, e nessa levada nem sentiam o tempo passar, ou então era o tempo que fazia o favor de passar desapercebido por eles pra jamais tornar os dias repetitivos.

A vida deu pra melhorar, felizmente, e de tanto passar o tempo, ano após ano, 25 anos, seis meses e 17 dias acabaram se passando.
Nem parece.
O dia em que Antônio prometeu chegar finalmente chegou hoje.
Agora só falta chegar a hora prometida, meio-dia, e com ela chegar Antônio.
Aqui, em dois mil e pouco, tudo já está exatamente do jeito que ele disse que estaria.
Medo virou lenda, falta virou sobra, palavra virou fato, Nordestina virou livro, alegria virou moda, Antônio virou gente e, deixando a modéstia de lado, até que virei gente importante.

No meio da praça agora tem um pé de caju que dá flor o ano todo, onde tinha a estação construíram um cinema, ali onde antes ficava a bica hoje tem até estátua de Antônio, só que com minha cara de antes.
Mas é claro que eu não consegui dormir a noite inteira.
Fiquei aqui lembrando dos detalhes daquele dia há, 25 anos, seis meses e 17 dias exatos, quando cheguei aqui, vindo lá do tempo que era meu naquele tempo, e encontrei tudo assim, coisa por coisa.
Veja só que vai e vem, cada coisa que vi naquele dia virou palavra que contei, pra depois então ir virando coisa outra vez, até ficar tudo de novo cada coisa no seu canto, que nem assim como está agora.
Deve ser bem por esse motivo que há quem ache que tem que se dar tempo ao tempo, eita povinho pra gostar de achar, esse.
Adriana Falcão, in A máquina

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