domingo, 19 de agosto de 2018

Eu, Mwanito, o afinador de silêncios (trecho)

Na verdade, não nasci em Jesusalém. Sou, digamos, emigrante de um lugar sem nome, sem geografia, sem história. Assim que minha mãe morreu, tinha eu três anos, meu pai pegou em mim e no meu irmão mais velho e abandonou a cidade. Atravessou florestas, rios e desertos até chegar a um sítio que ele adivinhava ser o mais inacessível. Nessa odisseia cruzamos com milhares de pessoas que seguiam em rumo inverso: fugindo do campo para a cidade, escapando da guerra rural para se abrigarem na miséria urbana. As pessoas estranhavam: por que motivo a nossa família se embrenhava no interior, onde a nação estava ardendo?
À frente, enfiado no banco dianteiro, seguia meu pai. Parecia enjoado, talvez ele tivesse assumido que viajava mais num barco que numa viatura. — Isto aqui é a Arca de Noé motorizada — proclamou quando ainda tomávamos lugar na velha carripana.
Junto conosco, nas traseiras da camioneta, viajava Zacaria Kalash, o antigo militar que apoiava meu velho pai nos afazeres diários.
Mas vamos aonde? — meu irmão perguntou.
A partir de agora deixou de haver aonde — sentenciou Silvestre.
No final dessa longa viagem, instalamo-nos numa coutada havia muito deserta, fazendo abrigo num abandonado acampamento de caçadores. Em redor, a guerra tornara tudo vazio, sem sombra de humanidade. Até os animais eram escassos. Abundava apenas o bravio mato onde, desde havia muito, nenhuma estrada se desenhava.
Nos escombros do acampamento nos instalamos. Meu pai, na ruína central; eu e Ntunzi, numa casa anexa. Zacaria se arrumou num velho armazém, localizado nas traseiras. A antiga casa da administração ficou desocupada.
Essa casa — disse o pai — é habitada por sombras e governada por lembranças.
Depois, ordenou:
Ali ninguém entra!
Os trabalhos de restauro foram mínimos. Silvestre não queria desrespeitar aquilo que ele chamava de “obras do tempo”. De um único labor ele se ocupou: à entrada do acampamento havia uma pequena praceta com um mastro onde, antes, se hasteavam bandeiras. Meu pai fez do mastro um suporte para um gigantesco crucifixo. Por cima da cabeça de Cristo ele fixou uma tabuleta onde se podia ler: “Seja bem-vindo, Senhor Deus”. Esta era a sua crença:
Um dia, Deus nos virá pedir desculpa.
O Tio e o ajudante se benziam, atabalhoadamente, para esconjurar a heresia. Nós sorríamos confiantes: alguma proteção divina deveríamos usufruir para nunca sofrermos de enfermidade, mordedura de cobra ou emboscada de bicho.
Mia Couto, in Antes de nascer o mundo

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