Na verdade, não
nasci em Jesusalém. Sou, digamos, emigrante de um lugar sem nome,
sem geografia, sem história. Assim que minha mãe morreu, tinha eu
três anos, meu pai pegou em mim e no meu irmão mais velho e
abandonou a cidade. Atravessou florestas, rios e desertos até chegar
a um sítio que ele adivinhava ser o mais inacessível. Nessa
odisseia cruzamos com milhares de pessoas que seguiam em rumo
inverso: fugindo do campo para a cidade, escapando da guerra rural
para se abrigarem na miséria urbana. As pessoas estranhavam: por que
motivo a nossa família se embrenhava no interior, onde a nação
estava ardendo?
À frente, enfiado
no banco dianteiro, seguia meu pai. Parecia enjoado, talvez ele
tivesse assumido que viajava mais num barco que numa viatura. —
Isto aqui é a Arca de Noé motorizada — proclamou quando ainda
tomávamos lugar na velha carripana.
Junto conosco, nas
traseiras da camioneta, viajava Zacaria Kalash, o antigo militar que
apoiava meu velho pai nos afazeres diários.
— Mas vamos
aonde? — meu irmão perguntou.
— A partir de
agora deixou de haver aonde — sentenciou Silvestre.
No final dessa
longa viagem, instalamo-nos numa coutada havia muito deserta, fazendo
abrigo num abandonado acampamento de caçadores. Em redor, a guerra
tornara tudo vazio, sem sombra de humanidade. Até os animais eram
escassos. Abundava apenas o bravio mato onde, desde havia muito,
nenhuma estrada se desenhava.
Nos escombros do
acampamento nos instalamos. Meu pai, na ruína central; eu e Ntunzi,
numa casa anexa. Zacaria se arrumou num velho armazém, localizado
nas traseiras. A antiga casa da administração ficou desocupada.
— Essa casa —
disse o pai — é habitada por sombras e governada por lembranças.
Depois, ordenou:
— Ali ninguém
entra!
Os trabalhos de
restauro foram mínimos. Silvestre não queria desrespeitar aquilo
que ele chamava de “obras do tempo”. De um único labor ele se
ocupou: à entrada do acampamento havia uma pequena praceta com um
mastro onde, antes, se hasteavam bandeiras. Meu pai fez do mastro um
suporte para um gigantesco crucifixo. Por cima da cabeça de Cristo
ele fixou uma tabuleta onde se podia ler: “Seja bem-vindo, Senhor
Deus”. Esta era a sua crença:
— Um dia, Deus
nos virá pedir desculpa.
O Tio e o ajudante
se benziam, atabalhoadamente, para esconjurar a heresia. Nós
sorríamos confiantes: alguma proteção divina deveríamos usufruir
para nunca sofrermos de enfermidade, mordedura de cobra ou emboscada
de bicho.
Mia Couto,
in Antes de nascer o mundo
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