Sai-se para o
voo o pesouro, como um botão de uma casa. E ab abrupto: abre-se de
asas sob estojos, não cabe nas bainhas. Primeiro, porém ex-surge —
irrompe de algum buraco do fundo. Onde aonde que anda, curvo sempre a
carregar-se, e a bulir; telúrico. Sendo um dos que rolam bola, dos
chamados bosteiros. E vai às flores! Sabe-as só dos colibris e
borboletas? Quando nas pétalas, choca seu vulto labrusco, cujo modo
bomboso, essa cúbica figura, a presença abalroante, de cônego
intruso. Seja que às vezes uma corola o expulsa: dá para trás, num
jacto de glóbulos e grudes; com sua culpa, de furto, feiura, luto,
lambuzabilidade e estupro. Contudo, cura de repetir: e começa sempre
obscenamente a voar. Também muito já se disse que, pela compleição
do corpo, cunho, peso, proporções e forma, faltam-lhe condições
de ser aéreo; e em cômputos rigorosos a ciência já demonstrou que
ele não pode absolutamente voar. Só mesmo por incompetência e
ignorância.
Isto é, às
vezes acontece que um deles descubra tal matemática impossibilidade,
e, cônscio então da própria inaptidão, não consegue se subir nem
reles palmo: ao alto e ar não se atraverá mais, jamais.
Digo de um, que
caiu do castanheiro, na rue des Graviers, a 27 de abril de 1949,
quando o chão se apanhava de flores rosa e neve. Debatia-se. De suas
costas deiscentes — qual pinha cozida ou casco de boi — em vão
descerrava os élitros cor de avelã, a cabecinha oscilante dentro
dos duros ombros, e mexia as patas meticulosamente peludas, rogando
com as antenas de plumosos extremos. Ora descambou, dando a ver o
preto tórax, a barriga em hirsuto. Nada podia.
Não que se visse
mutilado, nem contuso. Nada falou, nenhum resmungo; a não ser o que
por desventura se zumbiu, de si consigo. Súbito ele havia-se
despertado, sentira-se nu, a curto, suspeitara-se em erro de origem.
Decerto, não pelo raciocínio; que são cálculos e números, para
um bagalhão de besouro? Mas, assim qualquer coisa como que revelada
e intuída, almamente, simples pingo de consciência, o ferir de um
ponto de espírito. Soube-se ou notou que não passava de um grutesco
corcunda, cascudo casca-grossa, rude muito mecânico, no denso e
obtuso calibanato — para quem voar seria um descomedimento e
florejar um usurpo.
Compôs-se, a
custo, penitente, recusando-se às prematuras tenras asas baixo à
bem fechada cobertura. E andou, bom pedaço, se deixando das flores,
conforme conduz seu bauzinho preto, sob tanta escaravelhice, que
impressiona. Caminhava se abraçando com a terra — pisada, cuspida
e venerável.
Guimarães Rosa,
in Ave, palavra
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