terça-feira, 28 de agosto de 2018

Carta a uma amiga francesa

Querida Françoise: 
 
Você voltou a Paris com uma ótima impressão do Brasil. Ainda não me enviou uma mensagem, mas aqui você fez comentários elogiosos e, mais que isso, esperançosos sobre o país. Talvez por ser jovem demais, você ainda cultiva tanta esperança… Eu cultivo uma velha goiabeira no meu jardim diminuto.
Paris deve estar branca e gelada, com tons acinzentados de fachadas de edifícios e pontes antigos. Mas você sabe que depois da melancolia do inverno virá o esplendor da primavera. O clima de São Paulo se perverteu: o verão começou com frio.
Não sei o que você fez no dia 28 de dezembro. Talvez tenha ido ao Mercado das Pulgas, à feira da Rue Mouffetard ou àquele belo café da Rue Cler, que tanto apreciamos.
Talvez não ido a nenhum lugar, pois uma caminhada sem rumo por Paris nos conduz a algum tipo de descoberta.
No dia 28 acordei cedo para renovar minha carteira nacional de habilitação: nome pomposo para uma simples carteira de motorista. Você não andou por Santo Amaro, nem por bairros pobres e favelas, só conheceu uma São Paulo que é promessa de uma cidade civilizada.
Cheguei ao Poupatempo de Santo Amaro por volta das oito da manhã e, quando vi a multidão séria e sonolenta, quase desisti de renovar minha carteira. Mas seria uma viagem desperdiçada, por isso decidi entrar na fila. Ir ao Poupatempo entre o Natal e o Ano-Novo é um desafio à paciência. Mesmo assim, é um espaço democrático, quase toda a pirâmide social paulistana está ali. Claro que não havia membros ilustres dos Três Poderes republicanos: nossas castas superiores, que vivem nas alturas, bem longe das adversidades do cotidiano.
Você viajou para a França antes da discussão áspera entre o Conselho Nacional de Justiça e o Poder Judiciário. Seria difícil explicar a uma francesa o significado dessa contenda, mas posso lhe adiantar que uma parte da cúpula do nosso Judiciário não aceita qualquer tipo de crítica. Alguns togados que interpretam as leis julgam-se acima da Lei. Mas se eles e certos políticos soubessem o que eu ouvi durante as nove horas de espera… Sim, nove horas para renovar uma maldita carteira de motorista. Só isso dá uma ideia de como sua visão do Brasil é um pouco fantasiosa, de como sua esperança é questionável.
Curiosamente, o assunto principal no Poupatempo era o Poder Judiciário. As palavras ofensivas dirigidas a esse Poder fariam corar qualquer magistrado francês. Palavras de brasileiros humildes e de classe média. Nesse desabafo coletivo, nenhum dos poderes foi poupado, tamanha é a frustração das pessoas. As vozes indignadas na sala de espera não cessaram na plataforma da estação de Santo Amaro. Falavam tão alto que não seria absurdo ouvi-los em Paris. Eu, que prefiro ouvir a falar, acabei dizendo alguma coisa. Enquanto esperava o trem, dei uma olhada na paisagem. Vi um braço da represa de Guarapiranga que deságua no rio Pinheiros. À minha esquerda, favelas entre muralhas de prédios. Uma leve ondulação na água me fez sonhar com peixes prateados, mas eram garrafas de plástico que flutuavam nas margens do Pinheiros. Dezenas, talvez centenas de garrafas e outros dejetos brilhavam na superfície do rio agonizante.
É verdade que o consumo dos brasileiros aumentou. O lixo acumulado nos rios e nas ruas é testemunha disso. Você bem que notou essa euforia econômica, uma euforia que esconde problemas antigos. Milhões de pobres tornaram-se consumistas, mas não cidadãos. Uma sociedade de consumo, sem cidadania. Será esse o triste destino da maioria dos brasileiros?
Você vê um futuro promissor para o meu país. Eu vivo no presente, onde vejo uma aberrante desigualdade social, promíscuas transações e, o que é pior, impunidade. Agora mesmo um senador ficha-suja foi reempossado.
Chère Françoise, os Três Poderes não bastam para consolidar uma democracia. E o progresso, querida amiga — esse progresso que é sinônimo de consumo —, na maioria das vezes não passa de um conto de fadas. Apesar de tudo, sua esperança enorme me dá um pouco de ânimo… Agora vou aguar minha goiabeira, que parece murcha. Mande notícias do inverno parisiense.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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