Querida Françoise:
Você voltou a Paris com uma ótima
impressão do Brasil. Ainda não me enviou uma mensagem, mas aqui
você fez comentários elogiosos e, mais que isso, esperançosos
sobre o país. Talvez por ser jovem demais, você ainda cultiva tanta
esperança… Eu cultivo uma velha goiabeira no meu jardim diminuto.
Paris deve estar branca e gelada, com
tons acinzentados de fachadas de edifícios e pontes antigos. Mas
você sabe que depois da melancolia do inverno virá o esplendor da
primavera. O clima de São Paulo se perverteu: o verão começou com
frio.
Não sei o que você fez no dia 28 de
dezembro. Talvez tenha ido ao Mercado das Pulgas, à feira da Rue
Mouffetard ou àquele belo café da Rue Cler, que tanto apreciamos.
Talvez não ido a nenhum lugar, pois uma
caminhada sem rumo por Paris nos conduz a algum tipo de descoberta.
No dia 28 acordei cedo para renovar minha
carteira nacional de habilitação: nome pomposo para uma simples
carteira de motorista. Você não andou por Santo Amaro, nem por
bairros pobres e favelas, só conheceu uma São Paulo que é promessa
de uma cidade civilizada.
Cheguei ao Poupatempo de Santo Amaro por
volta das oito da manhã e, quando vi a multidão séria e sonolenta,
quase desisti de renovar minha carteira. Mas seria uma viagem
desperdiçada, por isso decidi entrar na fila. Ir ao Poupatempo entre
o Natal e o Ano-Novo é um desafio à paciência. Mesmo assim, é um
espaço democrático, quase toda a pirâmide social paulistana está
ali. Claro que não havia membros ilustres dos Três Poderes
republicanos: nossas castas superiores, que vivem nas alturas, bem
longe das adversidades do cotidiano.
Você viajou para a França antes da
discussão áspera entre o Conselho Nacional de Justiça e o Poder
Judiciário. Seria difícil explicar a uma francesa o significado
dessa contenda, mas posso lhe adiantar que uma parte da cúpula do
nosso Judiciário não aceita qualquer tipo de crítica. Alguns
togados que interpretam as leis julgam-se acima da Lei. Mas se eles e
certos políticos soubessem o que eu ouvi durante as nove horas de
espera… Sim, nove horas para renovar uma maldita carteira de
motorista. Só isso dá uma ideia de como sua visão do Brasil é um
pouco fantasiosa, de como sua esperança é questionável.
Curiosamente, o assunto principal no
Poupatempo era o Poder Judiciário. As palavras ofensivas dirigidas a
esse Poder fariam corar qualquer magistrado francês. Palavras de
brasileiros humildes e de classe média. Nesse desabafo coletivo,
nenhum dos poderes foi poupado, tamanha é a frustração das
pessoas. As vozes indignadas na sala de espera não cessaram na
plataforma da estação de Santo Amaro. Falavam tão alto que não
seria absurdo ouvi-los em Paris. Eu, que prefiro ouvir a falar,
acabei dizendo alguma coisa. Enquanto esperava o trem, dei uma olhada
na paisagem. Vi um braço da represa de Guarapiranga que deságua no
rio Pinheiros. À minha esquerda, favelas entre muralhas de prédios.
Uma leve ondulação na água me fez sonhar com peixes prateados, mas
eram garrafas de plástico que flutuavam nas margens do Pinheiros.
Dezenas, talvez centenas de garrafas e outros dejetos brilhavam na
superfície do rio agonizante.
É verdade que o consumo dos brasileiros
aumentou. O lixo acumulado nos rios e nas ruas é testemunha disso.
Você bem que notou essa euforia econômica, uma euforia que esconde
problemas antigos. Milhões de pobres tornaram-se consumistas, mas
não cidadãos. Uma sociedade de consumo, sem cidadania. Será esse o
triste destino da maioria dos brasileiros?
Você vê um futuro promissor para o meu
país. Eu vivo no presente, onde vejo uma aberrante desigualdade
social, promíscuas transações e, o que é pior, impunidade. Agora
mesmo um senador ficha-suja foi reempossado.
Chère Françoise, os Três
Poderes não bastam para consolidar uma democracia. E o progresso,
querida amiga — esse progresso que é sinônimo de consumo —, na
maioria das vezes não passa de um conto de fadas. Apesar de tudo,
sua esperança enorme me dá um pouco de ânimo… Agora vou aguar
minha goiabeira, que parece murcha. Mande notícias do inverno
parisiense.
Milton Hatoum, in Um solitário
à espreita
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