quinta-feira, 12 de julho de 2018

Pro outro tempo, pro outro mundo


Não parava de cantar, Antônio, afirmando que ia pra outro tempo enquanto o povo todo desconfiava que era pro outro mundo que ele ia, e só se ouvia o martelo martelando lá dentro, toc, toc, toc, e quando os sete dias se passaram, o oitavo dia acordou e deu de cara com a máquina da morte prontinha.
Mas ficou bonita demais, dava até gosto ficar vendo.
E isso anda?”
Não andava.
Voa?”
Não voava.
Nada?”
Não.
Claro que não cabia na compreensão de ninguém, como é que Antônio diz que vai pra outro tempo se essa máquina não sai do canto? E ele até se irritava, isso aí é a máquina da morte, eu é que sou a máquina do tempo.
E o povo duvidando: “E é, é? Desde quando?”.

O tão esperado dia da morte do tão falado Antônio tinha chegado, e Nordestina nunca imaginou que a reta que ele tirava de sua casa até o meio da praça fosse um dia ficar tão famosa.
Tinha até banda tocando quando ele saiu pela porta carregando sua máquina nas costas.
Cada passo que dava era da maior importância e houve quem lhe entregasse presente, houve quem lhe dissesse bobagem, houve quem risse, quem chorasse, houve até quem se descabelasse por ver Antônio de perto.
Dona Nazaré estava muito ocupada no tanque quando foram lhe chamar pra festa e mandou dizer que não ia, não, que nunca viu meninos pra sujarem roupa como aqueles, e que se fosse parar de fazer seu serviço pra ficar vendo invenção de Antônio, não faria outra coisa na vida.
Karina não aceitou lugar de honra, nem copo d’água, nem cafezinho, se misturou à multidão e seguiu com os olhos a procissão de Antônio sozinho. No que ele passou em sua frente, fez em nome do pai como os outros, fazendo de conta que não era com ela.
A primeira parte da promessa ele já tinha cumprido.
Olha o mundo todo ali, olhando para Nordestina.
Só restava cumprir o resto.

Faltando somente um minuto pra hora marcada, às 11h59 exatamente, Antônio entrou na máquina de sua própria morte, feita com suas próprias mãos, e todos os olhos, todos os ouvidos, todas as câmeras e todos os microfones do mundo apontaram pra ele, um patrocínio Alisante Karina, ele vai morrer de amor por você.
Se pudesse divulgar o que estava sentindo, sem trazer inquietação ao coração de Karina, talvez Antônio tivesse confessado ali mesmo, pro mundo todo ouvir, que estava com um medo desgraçado, sabe o verbo medo?
Nem parecia.
Quem olhava pra ele, ou seja, o mundo inteiro, não diria nunca que se tratava de um homem que sentia um frio no espinhaço.
E foi então que deu a hora certinha que Antônio tinha marcado pra partir, meio-dia em ponto, cinco, quatro, três, dois, um, Ave-Maria, e seu coração disse pra sua cabeça, vá, e sua cabeça disse pra sua coragem, vou, e sua coragem respondeu, vou nada, mas Antônio não ouviu, e quando as setecentas lâminas da máquina da morte botaram pra funcionar, todas elas ao mesmo tempo, na maior ligeireza, o mundo todo que estava esperando pra ver tripa de Antônio, sangue de Antônio, osso de Antônio virar pó, não viu foi coisa nenhuma.
Adriana Falcão, in A máquina

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