sexta-feira, 13 de julho de 2018

O sono

Que se passa com este garoto, que não quer dormir? Acorda cedo, vai à praia, almoça um boi, janta outro, pula feito macaco, está exausto até o sabugo da alma; entretanto, quando o sol se recolhe, ele não faz o mesmo. Pretenderá abolir a noite, prosseguindo infindavelmente nos jogos e experiências do dia claro.
Livros especializados responderiam à pergunta. Mas um avô que se preza jamais recorreria à ciência dos outros para iluminar sua ignorância. A resposta deve vir da compreensão amorosa, forrada de paciência, que costuma falecer aos avós mais aperfeiçoados.
Não, o guri não quer saltar sempre, como brinquedo a que se desse corda infinita. Seus olhos já não têm aquele foguinho azul-claro que crepitava a cada hipótese de prazer, durante o dia. Estão baços e estreitos, como convém à viagem do sono. E se o menino não se dispõe a empreendê-la, é porque sabe que irá sozinho, que todos nós dormimos abandonados e ermos, que o mundo murcha em nosso redor, e perdemos todo contato com a corrente da vida. Se a casa inteira fosse dormir, bem seria um mergulho geral, e os sonos se sentiriam solidários; mas é cruel ir para a cama, e saber que lá embaixo a vida está acontecendo em volta à mesa do jantar, e o riso imprudente dos adultos soa como um odioso privilégio. Então se desenrola o entreato da escada.
A escada marca a separação de dois mundos: o mundo propriamente dito e a solidão. É longa, e cada degrau que se sobe representa um passo para o exílio. Deve-se subi-la devagarinho, e descê-la em ritmo de carga de cavalaria. Infelizmente, é hora de subir. As autoridades, sob compromisso de recolhimento pacífico, prometeram um serão mais longo, mas tudo acaba, e temos de enfrentar a noite e seus espaços vazios e desolados.
Anda mais depressa, menino.
Um momentito. Tenho ganas de coçar-me as rodijas.
Senta-se e começa a coçar-se, na calma. Levanta-se e olha para baixo, saudoso, como do alto de um clipper.
Mamãe…
Que é?
Amanhã bos me regalás uma cosita que eu quero mucho?
Que coisa, filhinho?
Todavia não sé. Es um negocio mui lindo, focê sabe?
Bem, amanhã você lembra e me diz. Agora vai dormirzinho, vai.
Quero água.
Mas, meu bem, agorinha mesmo você bebeu um copo d’água!
Quero más.
Deita, e mamãe te traz água.
Sim, voi acostarme. E me contás um conto de Ruãozinho e Maria?
Vários contos são contados, já na cama, e o menino parece vencido. A família janta, satisfeita. Ouve-se um lamento débil:
Mamãe…
Que é?
Me olvidê de cepijar os dentes.
É engano, filhinho, você escovou.
Escovê mal.
Vai dormir, menino.
Ruído na escada. Então, ele não estava falando da cama?
Volte para o quarto e fique quietinho.
Faz que volta, sobe um degrau. Nova pausa, e recomeçam os apelos suaves e melancólicos de comunhão. Precisa contar o tombo que o Valdemar levou hoje na escola. Recorda-se de que a porta do “comedor” em Buenos Aires não ficou fechada aquele dia, e entrou um imenso galo cor de escuridão. Precisa atender a uma necessidade urgente; não podem ajudá-lo a acender a luz, tão alta? Quando baixarão los marcianos, que viajam em aviões-foguetes?
As pessoas perdem a paciência, divertem-se, ameaçam, imploram-lhe que durma só um pouquinho. Imagem de vigília, mãos no rosto, bocejante e perseverante, sentado no alto da escada, seu pequenino corpo escondido no pijama parece aguardar que um cataclismo subverta a face da terra, e as pessoas crescidas voltem a ser crianças para entenderem a tristura de adormecer.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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