sábado, 14 de julho de 2018

O jato fantasma


Passaram-se dias, semanas e, numa travessia agradável, o Pequod de marfim tinha percorrido lentamente quatro regiões de cruzeiro diferentes: ao largo dos Açores; ao largo de Cabo Verde; no Prata (assim chamado), ao largo da foz do rio da Prata; e Carrol Ground, uma extensão marítima não delimitada, ao sul de Santa Helena.
Foi quando deslizávamos por essas últimas águas que, numa noite calma e enluarada, quando todas as ondas rolavam como pergaminhos de prata e com a sua agitação suave faziam o que parecia ser um silêncio prateado e não solidão: foi nessa noite silenciosa que um sopro de prata, bem distante das bolhas brancas da proa, foi avistado. Iluminado pela lua, parecia celestial; parecia um deus emplumado e resplandecente surgindo do mar. Fedallah foi o primeiro a avistar esse jato. Pois nessas noites de luar ele costumava subir ao topo do mastro principal e ficar vigiando ali com a mesma atenção que teria durante o dia. No entanto, embora vários bandos de baleias fossem avistados durante a noite, nem mesmo um de cada cem baleeiros se arriscaria a descer os botes para elas. Imagine então com que emoção os marinheiros contemplaram o velho Oriental empoleirado no topo do mastro numa hora tão incomum; seu turbante e a lua, companheiros no mesmo céu. Mas depois de passar diversas noites sucessivas lá em cima, em intervalos regulares, sem proferir uma palavra; quando, depois de todo esse silêncio, escutaram sua voz sobrenatural anunciando o jato de prata iluminado pela lua, todos os marinheiros que estavam deitados se puseram de pé, como se um espírito alado tivesse descido ao cordame e saudado a mortal tripulação. “Lá está ela soprando!” Se a trombeta do Juízo Final houvesse soado, eles não teriam tremido mais; e, no entanto, não sentiam terror; mas, antes, prazer. Pois apesar do inusitado da hora, o grito foi tão impressionante, tão delirantemente excitante, que quase todos a bordo instintivamente desejaram descer à água.
Andando no convés a passos rápidos e aos solavancos, Ahab ordenou que colocassem os joanetes e os mastaréus de sobrejoanete e desfraldassem todas as velas auxiliares. O melhor homem do navio deve se ocupar do leme. Então, com todos os mastros guarnecidos, a embarcação deslizou de vento em popa. A estranha tendência da brisa dos balaústres de popa, a soerguer e levantar, preenchendo o vazio das tantas velas, tornava leve o convés ondulante e flutuante, como houvesse ar sob nossos pés; enquanto o navio avançava, como se duas influências antagônicas ali lutassem – uma para subir diretamente ao céu, outra para guinar rumo a algures no horizonte. Se você tivesse visto a cara de Ahab naquela noite, pensaria que dentro dele também duas coisas diferentes estavam em guerra. Enquanto sua única perna viva produzia ecos vivos no convés, cada golpe de sua perna morta soava como o baque da tampa de um caixão. Sobre a vida e sobre a morte, este velho caminhava. Mas embora o navio tão velozmente deslizasse, e de todos os olhos, feito flechas, olhares ansiosos se atirassem, o jato prateado não se viu mais naquela noite. Todos os marinheiros juraram tê-lo visto uma vez, mas não duas.
Este sopro da meia-noite já quase se tornara algo esquecido, quando, alguns dias depois, ah!, à mesma hora silenciosa, foi outra vez anunciado: todos o avistaram de novo; mas, ao desfraldar as velas para alcançá-lo, mais uma vez desapareceu, como se nunca tivesse existido. E assim sucedeu, noite após noite, até que ninguém mais lhe deu atenção, a não ser para admirá-lo. Misteriosamente jorrava à límpida luz da lua, ou das estrelas, conforme o caso; desaparecendo outra vez um dia inteiro, ou dois, ou três; e, de certo modo, a cada uma das suas reaparições, parecendo surgir sempre mais distante à nossa frente, este jorro solitário parecia atrair-nos sempre em frente.
Nem mesmo com a antiga superstição de sua raça e nem com a influência do caráter sobrenatural que em muitas coisas parecia envolver o Pequod, faltavam marinheiros prontos a jurar que, sempre e onde quer que fosse avistado; em circunstâncias ou em latitudes e longitudes bem diversas, aquele sopro inalcançável era lançado por uma única baleia; e essa baleia era Moby Dick. Durante algum tempo também reinava um sentimento particular de terror causado por essa efêmera aparição, como se viesse traiçoeiramente convidar-nos a seguir sempre em frente, para que o monstro pudesse nos atacar de repente e, por fim, nos estraçalhar nos mais remotos e selvagens mares.
Essas apreensões temporárias, tão vagas, mas tão terríveis, extraíam extraordinária força do contraste tão espetacular com o tempo sereno, que alguns achavam que por debaixo da brandura do azul se escondia um encantamento diabólico, pois durante dias e mais dias viajamos por mares tão enfadonhos e desoladamente amenos, que todo o espaço, como em oposição à nossa missão de vingança, parecia esvaziar-se de vida diante de nossa proa em forma de túmulo.
Mas, finalmente, depois de termos rumado para leste, os ventos do Cabo começaram a uivar à nossa volta, e subimos e descemos nas águas turbulentas dali; quando o Pequod com os seus dentes de marfim se inclinou bruscamente diante da tempestade e feriu as ondas negras com sua loucura, até que, como uma chuva de prata, os flocos de espuma ultrapassaram sua amurada; então todo esse desolado esvaziamento da vida se foi, mas deu lugar a visões ainda mais sinistras do que antes.
Perto da proa, estranhas formas na água corriam de lá para cá diante de nós; enquanto compactos atrás de nós revoavam os misteriosos corvos do mar. E todas as manhãs, empoleiradas nos estais, fileiras inteiras desses pássaros eram vistas; que, malgrado os nossos gritos, se mantinham longo tempo obstinadamente fixos no cânhamo, como se tomassem nosso navio por uma embarcação à deriva, abandonada; um objeto destinado à desolação, e, assim, um poleiro adequado às suas almas errantes. E se elevava e arremessava, e sem descanso ondulava o mar negro, como se suas vagas enormes fossem uma consciência; e a grande alma do mundo sentisse angústia e remorso pelos pecados e sofrimentos que tinha causado.
Cabo da Boa Esperança, é como te chamam? Antes Cabo das Tormentas, como te chamavam outrora; pois, longamente seduzidos pelo pérfido silêncio de antes, vimo-nos lançados nesse mar atormentado, onde seres culpados, transformados naquelas aves e nestes peixes, pareciam condenados a nadar eternamente sem nenhum ancoradouro, ou a voar no espaço negro sem horizonte. Mas tranquilo, invariável e branco; sempre apontando sua fonte de plumas para o céu; sempre acenando de longe para avançarmos, o jato solitário ainda por vezes era avistado.
Durante toda essa escuridão dos elementos, Ahab, embora assumindo na ocasião o quase incessante comando do convés alagado e perigoso, manifestava a mais lúgubre reserva; e ainda menos que antes se dirigia aos seus oficiais. Em momentos tempestuosos como esses, depois de tudo amarrado em cima e embaixo, não havia mais nada a ser feito a não ser aguardar passivamente o desenrolar da tempestade. O Capitão e a tripulação tornavam-se então fatalistas incontestáveis. Assim, com a perna de marfim colocada no orifício habitual, e com uma mão segurando firmemente um ovém, Ahab passava horas e horas de pé, olhando fixamente para a direção do vento, enquanto uma rajada ocasional de granizo ou neve praticamente congelava suas pestanas. Enquanto isso, a tripulação, retirada da parte dianteira do navio pelas ondas perigosas, que quebravam com estrondos sobre a proa, fazia uma fila ao longo da amurada, no poço; e, para se proteger melhor da invasão das ondas, todos os homens se agarravam a uma espécie de bolina presa ao parapeito, na qual se balançavam como por um cinto muito grande. Poucas palavras, quiçá nenhuma palavra foi dita; e o navio silencioso, como que tripulado por marinheiros de cera pintada, prosseguiu, dia após dia, através da loucura e alegria veloz das ondas demoníacas. De noite, a mesma mudez da humanidade diante dos gritos do oceano prevalecia; ainda em silêncio, os homens balançavam nas bolinas; ainda sem palavras, Ahab enfrentou a tormenta. Mesmo quando a natureza cansada parecia pedir repouso, ele não buscava esse repouso na rede. Starbuck jamais conseguiu esquecer o aspecto do velho, quando, certa noite, ao descer à sua cabine para ver o barômetro, deparou com ele, de olhos fechados, sentado em sua cadeira aparafusada no chão; a chuva e o granizo meio derretido da tempestade da qual havia saído pouco antes ainda gotejando lentamente do chapéu e do casaco que nem tirara. Sobre a mesa ao seu lado, encontrava-se enrolada uma daquelas cartas de mares e correntes às quais me referi antes. Na sua mão firmemente cerrada, balançava uma lamparina. Embora o corpo estivesse ereto, a cabeça estava jogada para trás, de tal modo que os olhos fechados estavam fixos no axiômetro que pendia de uma trave no teto.
Que velho terrível!, pensou Starbuck com um calafrio, dormindo nesta tempestade, tu ainda olhas com determinação para o teu propósito.
Herman Melville, in Moby Dick

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